quinta-feira, 1 de julho de 2010

Carta do Sítio Nº 05

Sítio do Conde, 28 de junho de 1997

Amigas(os) e companheiras(os) de caminhada,

Ano passado, mais ou menos neste mesmo mês, fui conhecer o sertão. Estava tudo seco. A seca já durava dois anos. O pessoal do lugar já viveu seca de cinco anos, não sei como. Gado magro, gente magra; no dia em que cheguei tinham matado o último bode (festa-oásis no meio do deserto). Plantas esturricadas que mal tinham nascido. Só existia o que era nativo: cabeças de frade, rosas de Oxalá, quiabentos (ou sagração de Oxalá) para fazer cercas mais mortas que vivas. Na verdade aquilo que servia para cercar eram os espinhos. As palmas, o gado havia comido enquanto existiam. Só viviam os mandacarus - símbolo de vidas ressecadas gotejando teimosa esperança. A caatinga, vestimenta do sertão, quando seca, é o deserto. Tudo vai embora, de um jeito ou de outro. A rapaziada com a moçada vão-se para São Paulo, Rio ou Santos. A seca é terrível.
Voltei ao sertão este mês. Desde janeiro chove e muito. Os filetes de água, que não vi ano passado, agora eram rios que chegaram enchente onde moro. Tudo verde, flores e mais flores. As folhas cobriam os espinhos e a aridez se tornava boniteza. Como imaginar aqueles espinhos enormes dando flores e mais flores? Muito feijão. E milho. E aipim. A comida do baiano sertanejo. Vai sobrar. O preço cai, e vender quase não compensa. Só para não perder de todo o trabalho. Lembrei-me dos filmes e livros sobre o sertão nordestino: o Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão. Bem, o Sertão virou Mar. Isto eu vi. Testemunho.
Aqui no Sítio, meu microcosmo, estamos na Festa de S. Pedro. Todo o mês de maio rezamos a novena de Nossa Senhora. Já fizemos a Festa de Santo Antônio e depois a de São João Batista.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi Festa . A afirmação de que seja ópio do povo - falamos tantas vezes assim a respeito do Carnaval - tem seu aspecto de verdade. Claro, a gente não erra sempre. Mas como diz o velho Hegel, filósofo mais velho que o velho Marx, toda afirmação contém sua negação. Portanto, da expressão ópio do povo suguemos a oposta, alegria do povo. Legítima. Não como um ópio degenerado em alegria, mas uma alegria afirmada na aspiração popular de viver a vida bem vivida - se possível. Façamos o impossível.
E há mais. Sempre há um leite materno para a criança sedenta. Pelas anteriores Cartas do Sítio, deu para perceber, aliás com bastante clareza, não é? - que ando estudando a questão de como católicos vivem o Candomblé ou como “candomblecistas” vivem a sua Religião Católica. Não estou dizendo como devem viver. Me interessa aqui estudar como vivem de fato este fato no meio popular. Não quero estudar o Candomblé ou a Umbanda. O primeiro, principalmente o de origem ioruba, estabelecido focalmente em Salvador - Bahia, tem sido muito bem estudado do ponto de vista sócio-histórico por autores como Pierre Verger, Roger Bastide e outros de jaez o mesmo. Deus me livre de me meter neste meio. O que um rato faz no meio de elefantes? Bem, o rato, além de meter medo nos elefantes pode dizer a estes: falta estudar outra cultura tão importante quanto a angolana. Nossas raízes culturais africanas não são só iorubas. Englobam culturas e etnias africanas diversas. Quanto à Umbanda, a chamada Umbanda popular existe desde a década de 20, mas obras mais profundas apareceram a partir de 1970 com autores como W.W. Matta e Silva, Rivas Neto (os principais) com a chamada Umbanda esotérica.
Vamos deixar de lado o aspecto teórico do religioso em si e vamos para o que vou chamar de rituais afro-brasileiros. Por este nome eu quero chamar os diversos rituais populares que existem em Terrei-ros, Tendas, Salões, Barracões ou que nomes quisermos chamar. E, para entrar no problema preci-samos estudar de perto isto: o sincretismo. O sincretismo não acontece só no Brasil. Na própria África, uma nação, a atual Nigéria (ioruba) sincretizou Orixás daomeanos (Nanã Burukê, Obaluaê e outros menos conhecidos) rebaixando-os. No Daomé, Nanã (sincretizada no Brasil como Sant´Ana) exercia papel tão importante quanto Oxalá (sincretizado no Brasil como Nosso Senhor Jesus Cristo). Sob a dominação ioruba, Nanã passa a ser um Orixá rabugento e pouco simpático, uma espécie de “sogra”. E seus filhos têm um papel não muito simpático como Obaluaê, o Orixá da varíola. No sincretismo brasileiro ele vai conservar este caráter e ganhar outro, o da cura da varíola e, em certos lugares, será visto como o Orixá da saúde, quase se confundindo com Ossaim (a cura pelas ervas medicinais) Exemplos como este existem muitos.
Por sua vez, ao chegar ao Brasil com os escravos, o sincretismo se enriquece. Os escravos encontram os índios que na verdade se chamavam caboclos. Daí o aparecimento deste elemento nos rituais afro-brasileiros. Como a vinda dos escravos corresponde ao período aventureiro das grandes nave-gações, se supõe derivar daí o aparecimento dos marujos nos rituais. Mas outro fato intra-africano ocorre no Brasil. Nos países de origem, cada povoado possuía o seu orixá, um só. Ao chegarem ao Brasil, por razão de segurança dos bravos e valorosos escravocratas, os escravos são misturados, não permanecem juntos os da mesma nação ou família. São sempre misturados. O que resulta - males que vêm para o bem - num ritual em que diversos orixás, exus, caboclos, marujos, boiadeiros (cultura sertaneja) convivam num mesmo ritual. E acresce (outro sincretismo) que figuras africanas, já vivendo no Brasil, tornam-se, diríamos nós, santos por seu sofrimento e por vidas exemplares dentro do cativeiro. São os pretos-velhos e as mães-pretas, as tias-Maria, Anastácia, etc.
Podemos ver que o sincretismo não só acontece no Brasil, mas já é existente nos países de origem. Muito longe de “manchar” uma suposta “pureza”, o sincretismo enriquece os diversos rituais. Se formos estudar o sincretismo cultural existente em São Paulo, por exemplo, poderemos descobrir como é enriquecedor sair deste imenso liqüidificador que espreme mentes e corações humanos, resultando um belo e saboroso suco antropofágico. Mas se nós católicos, olharmos para o próprio umbigo, vamos ver que talvez o período mais rico do cristianismo esteja nos nossos três primeiros séculos de vida em que sincretizamos as grandes festas do paganismo. Ou nós, dominicanos, do alto de sete séculos de tomismo não sincretizamos Aristóteles, ou antes de São Tomás, Santo Agostinho a Platão?
Parto do seguinte: há católicos do meio popular que são “candomblecistas”; há “candomblecistas” que são católicos; há muitas pessoas que nasceram e cresceram freqüentando os dois rituais e vivem sua fé em, principalmente, santos e orixás identificados. Tomo o caso da minha vizinha. Ela é assídua à Igreja Católica e o é também ao Candomblé onde é filha-no-santo. A expressão filha(o)-de-santo ou mãe(pai)-de-santo não é a melhor. Ninguém é mãe(pai) ou filha(o) de santo nenhum (no sentido de “fazer a cabeça” ou ter a “cabeça feita”). Na Umbanda se diz mãe(pai) ou filha(o) de fé. Ou, acho até melhor mãe(pai) ou filha(o)-no-santo. Mas vamos deixar de lado estas firulas, para não usar a palavra mais indicada mas um tanto virulenta a ouvidos e mentes sensíveis. E ataquemos o que é sério. Minha vizinha (o ataque seria não a ela mas à questão em foco), na festa de Santo Antônio (sincretizado como Ogum na Bahia-Brasil), foi à missa, comungou e ao sair da igreja disse assim: cumpri a obrigação na minha Igreja. Agora vou ao toque (ritual) do meu candomblé. Para ela não há razão de se questionar. Participar das duas obrigações é normal e deve ser feito. Para ela o sincretismo existe. Ela, ao dançar no Terreiro cultua Ogum e Santo Antônio ao mesmo tempo, numa só pessoa e num só movimento. A diferença está no ritual e no corpo doutrinário e dogmático, não na mística. É precisamente a mística presente no ritual que o popular vive. Voltando ao exemplo da minha vizinha, o que faz a ligação do orixá e do santo é o sincretismo. A análise só aparece no instante de se fazer a distinção. No meio popular, a análise não é feita. È vivida a pessoa-sincrética. Vivida, vivenciada, misticizada. Autores sérios dizem que o sincretismo não existe, seria uma capa-esperteza para iludir os donos dos escravos e por conseqüência os católicos de hoje. Penso que a capa-esperteza durante muito tempo existiu. No entanto, no meio popular o que existe é um autêntico sincretismo.
Isto aí, amigos. Do alto do meu eremitério tropical à beira-mar plantado, não fiquei (totalmente) parado. Caminhando pela veia aberta do popular, espero tenha sido um bom intelectual - pelo menos orgânico. Creio que toquei com o dedo numa das feridas-chave para a compreensão do povo: o fato sincrético vivido. Resta aos bons intelectuais estudarem o sincretismo existente no nosso meio. Acho que será enriquecedor. Desejo aos corajosos um bom trabalho.
Durante uma reza - toda cantada - no dia de Santo Antônio - me veio à cabeça isto: o que estou fazendo, o que vivo, e estou vivo:

O Senhor
meu Senhor

No ôco
do páu-ôco
a Vida
vivida
morrida
ressurgida
a Vida

O Senhor
é presente
o meu Senhor (O ôco do pau oco)

E é deste eremitério tropical que lhes desejo a todos em cada um e a cada um no todo, boas e alegres festas juninas e outras.

Frei Fernando de Brito op