terça-feira, 16 de março de 2010

Carta do Sítio número 01


Sítio do Conde, 19/04/96
Amigas e Amigos

Afinal apareci na Diocese de Alagoinhas, nordeste da Bahia, divisa com o Sergipe através do famoso Mangue Seco. Ainda não vi a Tieta do Agreste, se ainda estiver viva. Sítio do Conde é um povoado de mais ou menos 1.700 habitantes, à beira mar, servida por ônibus para Sergipe, Salvador, Alagoinhas, Feira de Santana. Moro na Rua da Pipoca. Há duas interpretações para o nome. A primeira diz que é onde, à noite sobretudo, pipocam meninos. A outra é de que aqui era o lugar privilegiado de uma planta chamada pipoca. Quem for amante da exatidão histórica, fique com a segunda versão. Quem preferir o pitoresco, faça como eu e fique com a primeira. A casa onde moro é casa para descanso e retiro dos padres da Diocese de Alagoinhas. Está em reformas. É uma casa grande, espaçosa. O quintal é grande, bonito; pela frente podemos ver um grande coqueiral, uma lagoa cheia de mariscos, camarões e esquistossomose (este não dá para ver). Meninos brincando e brigando, coqueiros e mais coqueiros enfiados na areia. Casas pobres de frente e de fundos, casa de Candomblé separada da Igreja Universal do Reino de Deus pelo Bar do Fernando (o outro, não eu). Pela esquerda vai-se à Barra do Itariri (aldeia de pescadores). Pela direita vai-se à Rua da Mangueira que sai na Rua de Baixo. Da Rua de Baixo, subimos (é melhor) à Praça do Jegue (ou do Álcool). Daí podemos ir à Rua de Cima ou ao Areal ou vamos à Rua da Praia. A Rua da Praia acaba no Marzão. Quem nada bem e não mente diz que já chegou à África. Mas eu acho que é história de Pescador. Por falar em pescador, existe um esforço de trabalho com eles na Colônia de Pesca. A Igreja tem um núcleo que faz o que pode. E há um pequeno trabalho de Pastoral da Criança que consiste em merenda e pesagem das crianças. O padre de Conde, ao qual faz parte Sítio, celebra uma vez por mês aqui. Além do Sítio atende Rio Real (município) e Jandaíra (outro município) que, com seus povoados, para dar um atendimento precário, ele tem de percorrer 3.000 km. Eu vou ficar só em Sítio. Cheguei 5ª feira antes da Semana Santa. Celebrei a Semana Santa toda e avisei ao povo católico que faria visitas aos chefes das outras Igrejas para desejar-lhes Boa Páscoa. Já fui à Igreja Adventista do Sétimo Dia, à Igreja Universal do Reino de Deus, iniciante, muito pobre. Já fui a dois dos três terreiros de Candomblé e ainda vou ao 3º e a duas pessoas que fazem “Mesa Branca”, que não é tão branca assim. Planos? Começar do início. Para o pessoal da Igreja Católica, além da Missa Dominical, quero fazer um dia por semana de leitura da Bíblia, procurando entender o Evangelho deste ano, na realidade do Sítio. Na medida do possível, ajudar a Colônia dos Pescadores. E o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Conde, que está começando o mandato agora pediu um curso para entender o que é Sindicalismo e como planejar a sua atuação. Mas o que mais me preocupa é a situação da saúde. Sítio não tem médico. Seu ambulatório atende precariamente e a médica do Conde vai lá uma vez por semana. O Hospital do Conde é muito pobre e, na maioria das vezes, as pessoas têm de ir mais longe para fazer coisas simples. Penso fazer alguma coisa em termos de Medicina Popular. Agentes de Saúde Popular que, com o tempo, possam aprender a fazer massagens relaxamento, enfermagem, parto, cura pelo barro, ervas medicinais, etc. Enfim, começando do princípio, fé em Deus, amor à população, esperança de que vai dar certo, chegar onde Deus marcar.
É isto aí, meus amigos. Agora é cedo para dizer mais.
Bem amigos, continuem a rezar por mim e pelo povo do Sítio. Estou muito feliz aqui. Sinto que o lugar e o povo me trazem aconchego e me fazem orar.

domingo, 7 de março de 2010

PREFÁCIO: Cartas de "Sôfrei", uma fonte de água viva.


Frei Betto


De um lugar pouco conhecido do litoral norte da Bahia ¬ Sítio do Conde -, onde mora há mais de 6 anos (1996-2002), frei Fernando de Brito fez da literatura epistolar seu "diário de campanha". Escreveu centenas de cartas, enviadas a amigos e parentes e, agora, as melhores encontram-se reunidas nesta obra, para deleite de nós leitores.
Fernando, padre dominicano, é um escritor compulsivo. Mas, como bom mineiro, é desses que mata a cobra e não mostra o pau. Convivemos juntos no convento das Perdizes, em S. Paulo, e nos cárceres da ditadura (1969-1973). Sou testemunha de como ele é tão voraz escritor quanto guloso leitor. Das inúmeras cartas que redigiu na prisão, umas tantas foram publicadas no livro assinado por ele, por Ivo Lesbaupin e por mim ¬ "O canto na fogueira", editado pelas Vozes.
O que chama a atenção nessa coletânea de Cartas do Sítio é a riqueza de metáforas, o modo como a escrita do autor pincela rostos populares e registra expressões regionais, num primoroso ritmo de construção do texto. "SôFrei", como o Fernando de Brito é conhecido por seus vizinhos e amigos, transmite ao leitor sua inserção num mundo marcado pela pobreza mas, também, pela beleza da fé, da festa, da sabedoria desse povo que, apesar de tanto sofrimento, resiste bravamente e se recusa a abrir mão do direito à alegria.
Aqui, ao contrário do que ocorre nas igrejas, é o frade que se confessa aos leitores. Fernando abre o coração e relata, com riqueza de detalhes, sua comunhão com a gente do Sítio do Conde, revelando que a verdadeira evangelização não nasce da pretensiosa postura de quem se julga portador de verdades divinas, mas da convivência diária, prenhe de gratuidade, que permite uma profunda inculturação. Do seu "eremitério tropical", o religioso comunica aos que estão distantes todo o colorido da vida de um povo e de uma região onde o sincretismo se faz expressão religiosa de autêntico ecumenismo; a medicina popular salva vidas; a carência instaura a solidariedade e, assim, tece vínculos estreitos, fundando a verdadeira comunidade.
"SôFrei" ouviu, sentiu e viveu tudo isso narrado nas cartas. E, graças ao seu talento epistolar, agora partilha com todos nós, leitores. Na verdade, este livro é um convite a mergulharmos na alma de nosso povo e, assim, descobrir que há algo mais neste Brasilzão que vai muito além de nossa vã imaginação.




Obs. Toda semana postaremos uma carta, deste livro de Frei Fernando.

Admilson