Sítio do Conde, 18 de
outubro de 1997.
Amigos de curta e longa data
Estes dias tive muitas
alegrias. Estava na Rodoviária de Salvador esperando meu ônibus. Voltava para
casa depois de ter-me encontrado com o amigo-irmão João Antônio Caldas Valença.
Irmão desde a década de 60 quando nos encontramos no Convento dominicano de São
Paulo onde estudávamos; amigos desde sempre, creio em Deus. Caminhos se cruzam,
se separam, nos encontros é como o hoje sendo ontem ou o dia seguinte. Feliz
por irmanar o amigo Osmar. Prosa vai, conversa vem, coisa melhor que
Pelourinho, Sé, Unhão, Piatã, Abaeté, tudo o mais. Ao sair, sem despedidas.
Continuaríamos juntos. Na Rodoviária, ainda vivendo o embalo da amizade, de
repente sinto alguém me batendo às costas:
- Oi , frei. – Era o outro
amigo-irmão João Batista dos Santos. Não o irmão santo de tanto sofrido, o da
Unilabor mas o caboclo de pai e mãe. Nascido xocanaan no município de Tapira,
no mais seco da caatinga pernambucana, João foi parar em Goiânia para fazer o
pré-noviciado na Ordem dos Dominicanos. Eu o conheci ali. Era um momento em que
eu queria saber melhor de minas raízes culturais. As portuguesas as conhecia de
sobra. Mas, trineto de uma cabocla coroado, nada sabia destes meus
antepassados. Daí nasceu uma bela amizade. Acompanhei João Batista, então
chamado o Índio pelo pré-noviciado, noviciado em Uberaba e o pouco de tempo que
ficou em Belo Horizonte. Juridicamente não pertence à Ordem. Como Caldas,
continua dominicano. Sofreu muito, eu com-sofri. Hoje eu me pergunto o que se
passou. Não tenho resposta, tenho uma interrogação, uma só. Os primeiros
dominicanos vieram ao Brasil para trabalhar com os caboclos dos atuais estados
de Goiás e Tocantins. Deste trabalho, ao que me consta, nenhuma vocação cabocla
resultou, como seria natural. Não sei porque mas desconfio de que os
dominicanos deveríamos fazer um sério exame de consciência. Por acaso não terá
sido falta de acolher o caboclo na sua legítima cultura cabocla?
O re-encontro com
João Batista foi encontrar, não o padre com um leigo, mas um amigo com amigo, irmão com irmão. Foi ele, ainda em
Goiânia que me ensinou a técnica cabocla de plantar no sertão. Como do sertão
às areias escaldantes do beira-mar é só um pulinho, resolvi trazer a técnica
cabocla para a Casa de São Francisco. Sim, porque areia fervendo com adubo
fermentado mata qualquer planta. Portanto, na areia deixemos de lado o plantio
tradicional e façamos o plantio caboclo. Pensado, executado. Mandei os meninos
pelos pastos afora pegando adubo seco de vaca ou boi, conforme a preferência. O
adubo é espalhado sobre a areia formando um tapete. Não deixa a areia, vinda
pelo vento, entrar na planta, a defende do calor do sol na areia, segura no
andar térreo e sal da maresia não o deixando chegar ao pé da planta, no
subsolo. Como é seco, o adubo não fermenta ou fermenta pouco. Com o tempo e a
chuva, o adubo vai penetrando na areia e a fertiliza. Com ano e meio de uso
esta areia já está bastante adubada. No entanto de dois em dois meses é preciso
colocar novo adubo. Bem, é isto aí, garanto que dá certo. Já andam dizendo que
aconteceu milagre na Casa de São Francisco. Só não dizem se o milagre é do
próprio ou dos Santos Caboclos. Quem quiser usar a receita, à vontade. Não é
necessário escrever “copyright by Brazilian´s Caboclos”. Basta reconhecer seu
valor e cultura.
Mas, agora estou
aumentando a plantação de ervas medicinais. Consegui 5x32 metros de terra
contíguos à Casa, cerquei, tirei bastante areia, trouxe terra distante, adubo
mais distante ainda. Agora se trata de plantio mais ou menos convencional.
Devagar vou plantando de um tudo. Inicialmente, para servir à população, a erva
in natura. Mais tarde penso fazer pomadas, extratos, tinturas, xaropes,
garrafadas. Depois, outros sonhos. Por exemplo fazer daqui um centro de Saúde
Popular. Falo de Saúde Popular. Não falo de Medicina alternativa. O único
adjetivo é popular. Por isso quero falar de uma medicina boa, como o povo
merece, sem sectarismos. Não será chinesa, japonesa, induísta, alemã, francesa,
cabocla, negra, alopática, homeopática. Será, de tudo isto, o que há de melhor.
Medicina boa e a um preço acessível. Popular significa isto: boa e à altura do
bolso do pobre.
Baixinho, peito empinado,
voz forte de quem dá ordens, Seu Valério me olhou decidido mas agora triste.
Como bom ex-militar, engoliu lágrimas secas. Me disse:
foi-se o
penúltimo combatente do Sítio. Ele queria que eu lhe perguntasse o que já
sabia: - Quem é último?
Sem falsa modéstia, com modéstia nenhuma:
- Este seu criado.
Pensei ter visto montanhas de
orgulho. Quase analfabeto, enricou-se ao casar-se com D. Adélia, filha do
antigo dono disto tudo que se vê, outrora imensa sesmaria de coco, boi e
mangue. Hoje, além do orgulho, um rude humanismo. Boas gentes Seu Valério mais
D. Adélia. Fui junto com ele ao velório, na Capela Católica. Lá estava no
caixão, pequenos ele e o caixão de madeira trabalhada, o Seu Zezico. Tinha-lhe
amizade. Desde as visitas que fizera depois do derrame cerebral. Sem poder
sair, em cadeira de rodas, eu preferia não falar para não ouvir o que não
entendia. O silêncio falava pelos olhos. Ao sair, “até breve”, um leve sorriso
e um querer alçar de mãos diziam felicidade. Gostava do velho Zezico nos seus
noventa e lá vai pedrada.
Um segundo ataque o levou.
Agora é ele continuando a nos sorrir. Mas o corpo também é filho de Deus, é
casa santa, cálice sagrado. O velório com terços desfiados, Missa celebrada. O
padre tentou aliviar a situação de choro e ranger de dentes fazendo uma
pregação de morte “ligth”. Parece que deu resultado. Quem manifestou isto foi
Sá Lídia de cima, sessenta anos,
prematuramente encarquilhada. Também ela se finda em cadeira de rodas encomendada
por outro derrame, também cerebral. Ao término da pregação Sá Lídia, a de cima,
conseguiu se fazer entender:
A mais bonita pregação que já
ouvi! O padre suspirou aliviado. Minutos sem choro. Infelizmente continuou o
ranger de dentes. Terminada a missa todo o povo saiu para o enterro. Acompanhantes compungidos e público em
comentários ao defunto, família e acompanhantes neste então não tão
compungidos. Viu-se mesmo alguns botando a língua para fora, outros mostrando
os punhos fechados, outros mais mostrando a coronha de sua coragem. Dar banana
não vi não. Disseram mas não vi não. Ouvi muitos comentários acerca do já agora
universal bom defunto. Conheci toda sua história, da família, descendentes e
amigos.
Pelo caminho outras gentes que
estavam no Buraco Doce engrossaram a lenta procissão. Eram outros parentes do
Seu Zezico que, muito ortodoxos, lamentavam “esta gente moderna, ô xente, onde
já se viu enterro sem agrado?”. Preferiram chorar suas mágoas, não na Capela,
mas no Buraco Doce, afamado e aprazível local para chorar e beber defunto, comemorar
as poucas vitórias do time de futebol e outras tantas mazelas. Como este, só
mesmo a Creche dos Bêbados na rua de baixo. Os dois locais famosos e
movimentados. Pois bem, os advindos do Buraco Doce vinham um tanto alegres,
falastrazes, bamboleantes, pouco ortodoxos, na verdade bastante heterodoxos.
Juntando-se aos que já estavam caminhando, davam um ar um tanto ou quanto prá
lá de normal. Não havia banda de música, nem tubas, nem trombones de vara,
bumbo, nada. Nem mesmo tarol. Só algumas mulheres que cantavam e cantavam e
cantavam. Ao se cansarem, descansavam puxando o terço para elas mesmas e o
padre responderem. Piadas seguidas por estrondosas gaitadas seguidas de
monumentais escarradas. Alguns, para consolar os parentes do falecido contavam
outros casos de mortes pavorosas. Até casos de assombração foram raspados do
fundo do baú, em plena luz do dia. Crianças ouviam estórias ou histórias de
conquistas amorosas, chamemos assim, que o padre que também as tinha ouvido,
pensou tivessem saído de algum filme considerado pornô. Vigilante austero e
promotor dos bons costumes, o padre aproximou-se solenemente deste grupo que,
ao vê-lo, foi se dissolvendo vagarosamente, com dignidade no porte.
Chegaram ao cemitério. Pequeno,
pintado de branco-água num portão maiorzinho, em cima estava escrito Descanso
aprazível. Levamos Seu Zezico ao seu descanso. Em chegando lá, súbito,
lépido, pulou na cova Seu Bento. Pequeno, negro, cara simpática, Seu Bento,
mais bêbado que pato em véspera do próprio féretro, puxava conversa com todos
que estavam em volta. Ao percebermos que ia fazer nada ali, todos e cada um
todos juntos gritávamos para Seu Bento sair de lá que era lugar do caixão mais
seu ocupante. Seu Bento também gritava: “o caixão só vem pra qui passando por
cima de mim”. Ninguém queria fazer uma covardia destas nem com Seu Bento nem
com Seu Zezico. Estava chegando a situação a um ponto de quase explosão de
emoções indignadas quando o padre, afinal(!), assumindo sua notável fisionomia
de pacificador, fez sinal para todos se calarem – e se calaram, não sabe? Disse
o padre com voz pausada e relativamente doce: “ Seu Bento, venha cá rapaz,
venha para cima, vamos ajudar Seu Zezico a descansar”. Alguns assistentes
fizeram risos de mofa. Mas Seu Bento que não olhava os assistentes mas reparava
naquela hora só na cara do padre, não viu nele só a pretensa autoridade. Viu
alguém que o chamava pelo nome. Estendeu a mão ao padre, subiu ao seu lado e
juntos ajudaram Seu Zezico a descansar.
Como já lhes contei em carta
anterior, ano passado no domingo da
Ressurreição fui claro com os fiéis presentes à Ceia Eucarística. Disse-lhes:
“É meu costume visitar todos os chefes de todas as Igrejas ou Religiões para
desejar, a eles e seus seguidores, Boa Páscoa. Portanto, irei a todas as Igrejas
evangélicas e todos os Terreiros de Candomblé. Não peço que façam o mesmo. Além
disto, estou estudando o Candomblé!. Deverei freqüentar assiduamente os
Terreiros”. Falei e fiz. Penso que não houve fuxicos. Se os houve, não chegaram
a meus ouvidos moucos.
Comecei as visitas pelo
pai-no-santo Sô Niceto. Me impressionou. Disse-me que tocava Umbanda. Não era
Candomblé. Para ele a diferença fundamental estava na utilização ou não do Exu,
a figura mais controvertida do universo afro-brasileiro. A ponto de um dos
autores mais sérios da chamada Umbanda Esotérica, F. Rivas Neto, denominá-lo o
Grande Arcano. A concepção de umbanda de Sô Niceto, não resta dúvida, é muito
pessoal. Para os candomblecistas os exus, também chamados escravos ou
cargueiros, são os elementos que lidam com a matéria. São aqueles que fazem
realidade, desejos e mandos dos outros orixás. São seres amorais. Fazem o que
lhes é pedido, sempre através de “agrados”, sacrifícios de animais, farofa de
dendê com pimenta, bebidas alcoólicas, etc. Sua caracterização com órgãos
sexuais proeminentes, chifres na cabeça, lhes valeu serem sincretizados como
demônios. Eles são chamados para realizarem tanto obras consideradas boas como
más. Verdade que não li ou ouvi nada
sobre a possibilidade de usarem seu livre arbítrio. Claro, se são orixás eles
também, encarregados (cargueiros) de fazerem a ligação entre o céu dos orixás
(aruanda) e a prática terrena, são eles livres. Capazes de escolhas. Mas
popularmente são considerados “perigosos”, “maléficos”, “traquinas”. Por isto,
como Sô Niceto não faz trabalhos para o mal, não trabalha com exus. Além disto
não permite que se incorporem marinheiros, pombas-giras, baianos, boiadeiros, além
de exus. Porque bebem, e se apresentam dizendo piadas, usam palavrões, etc. Sô
Niceto é rigoroso. Também o é com sua própria prática. Poderia, como alguns o
fazem, trabalhar com feitiços e ganhar muito com isto. No entanto prefere
continuar pobre, humilde e reto de coração. É um santo pai-no-santo. Místico,
diz sempre: “sou das águas”. Filho de Nanã Buruku, gosta muito de ir à praia de
tardinha para prestar sua homenagem às águas. Personifica-as como Yemanjá,
Nanã, Oxum, Oxumaré. Fala a elas, lhe respondem nos sinais da natureza.
Quis fazer esta experiência a
meu modo. Experiência rica de beleza e significado na simplicidade e
magnificência da paisagem barroca do meu eremitério tropical. Saí de casa bem
cedo, olhei o alto, vi o sol a me aquecer e dar vida (Orixalá ou Oxalá);
respirei o ar a plenos pulmões (vento=Yansâ); encimando as dunas, cocos
empunhados por belos e elegantes coqueiros (verde=Ossaim, das ervas medicinais;
Oxossi=caçador das matas; Obaluaê=orixá da doença e saúde, que, expulso por
Nanã, sua mãe, por causa da varíola, foi viver na floresta com os orixás da
mata). Do alto, beleza das bonitezas, o longe mar alto (Yemanjá); o espumoso
quebra-mar (Oxumaré); o sem-fim caminho junto ao mar (Ogum beira-mar). Mística
e exuberante vivência do divino-natural personificado em orixás
afro-brasileiros. Ao chegar onde Oxumaré beija Ogum quebra-mar, numa pedra
saliente, eis um caboclo. Belo, sério, quinze anos de maturidade. O sábio
adolescente à minha frente olhava fixo o mar. Olhar não tenso mas fixo, não-movente.
Se olhos não se moviam, se não movia também a boca. Ele era silêncio. Silêncio
transmitindo profundidade. Calça branca de algodão barato arregaçada, pés
abertos no chão, braços cruzados. Sem camisa, pintando canela a paisagem azul
verdoirada.
- Oi, como
vai?, bom-dia, - profanei eu o espaço-templo.
- Sorriu
tímido: Oi, bom...
- Como é seu
nome?
Não disse seu
nome caboclo: - É meu e do meu povo, me chame Rodrigo.
- O que faz aí?
- Olho.
- O que?
- Tudo
- Está rezando?
- Sim, -
monossilabou.
- Como você reza?
- Silêncio.
- Só isto? –
manguei eu.
E Rodrigo:- Sim o
silêncio é tudo, disse ele sério, levando-me a sério.
Percebi que seu
silêncio não era calar-se de fora ou do dentro de si. Era fixar-se todo no em
frente. O em frente era o tudo. Repôs o olhar no tudo, em silêncio. Desviou o
olhar para mim e de novo com pequeno enorme sorriso:
Gosto de olhar o mar quando o
sol aparece ou desaparece. Mais quando aparece. O sol encontra a água, beija,
faz filhos.
Não vi Rodrigo até hoje. Mas
lembrei-me do amigo São João da Cruz. O caboclo místico se foi gerando um fato.
O fato é que era véspera da morte-vida de São Domingos. Fiquei todo o dia como
que birulado. Deitei-me cedo. Não dormi, tudo era sonho e era real. Revi a cena
diversas vezes. De repente, que nem raio, um forte impulso para levantar-me,
pegar papel e caneta. Escrevi mais rápido que a escrita:
Parição
Homenagem a
Pai Domingos
No Nada
o tudo
que o Nada
prenhe é o
Cheio.
O Tudo, por
primeiro existiu
como Nada e
este
no mais pleno
Vazio
encheu-se
parindo o Tudo
Certo,
da dor a flor
do carvão o
arco-íris
do barro a
menina
da seca terra o
manancial
do areal o
manguezal
do barro outro
o outro Ser.
Gente para
vazar
e locupletar
Sendo.
Amigos, do meu
eremitério tropical penso em vocês, penso em Deus, tento me silenciar. Oxumaré
no quebra-mar fala.
Frei Fernando de Brito O.P.