segunda-feira, 16 de julho de 2012

Carta do Sítio nº 07


Sítio do Conde,  18  de outubro de 1997.

Amigos de curta e longa data
Estes dias tive muitas alegrias. Estava na Rodoviária de Salvador esperando meu ônibus. Voltava para casa depois de ter-me encontrado com o amigo-irmão João Antônio Caldas Valença. Irmão desde a década de 60 quando nos encontramos no Convento dominicano de São Paulo onde estudávamos; amigos desde sempre, creio em Deus. Caminhos se cruzam, se separam, nos encontros é como o hoje sendo ontem ou o dia seguinte. Feliz por irmanar o amigo Osmar. Prosa vai, conversa vem, coisa melhor que Pelourinho, Sé, Unhão, Piatã, Abaeté, tudo o mais. Ao sair, sem despedidas. Continuaríamos juntos. Na Rodoviária, ainda vivendo o embalo da amizade, de repente sinto alguém me batendo às costas:
- Oi , frei. – Era o outro amigo-irmão João Batista dos Santos. Não o irmão santo de tanto sofrido, o da Unilabor mas o caboclo de pai e mãe. Nascido xocanaan no município de Tapira, no mais seco da caatinga pernambucana, João foi parar em Goiânia para fazer o pré-noviciado na Ordem dos Dominicanos. Eu o conheci ali. Era um momento em que eu queria saber melhor de minas raízes culturais. As portuguesas as conhecia de sobra. Mas, trineto de uma cabocla coroado, nada sabia destes meus antepassados. Daí nasceu uma bela amizade. Acompanhei João Batista, então chamado o Índio pelo pré-noviciado, noviciado em Uberaba e o pouco de tempo que ficou em Belo Horizonte. Juridicamente não pertence à Ordem. Como Caldas, continua dominicano. Sofreu muito, eu com-sofri. Hoje eu me pergunto o que se passou. Não tenho resposta, tenho uma interrogação, uma só. Os primeiros dominicanos vieram ao Brasil para trabalhar com os caboclos dos atuais estados de Goiás e Tocantins. Deste trabalho, ao que me consta, nenhuma vocação cabocla resultou, como seria natural. Não sei porque mas desconfio de que os dominicanos deveríamos fazer um sério exame de consciência. Por acaso não terá sido falta de acolher o caboclo na sua legítima cultura cabocla?
O re-encontro com João Batista foi encontrar, não o padre com um leigo, mas um amigo com  amigo, irmão com irmão. Foi ele, ainda em Goiânia que me ensinou a técnica cabocla de plantar no sertão. Como do sertão às areias escaldantes do beira-mar é só um pulinho, resolvi trazer a técnica cabocla para a Casa de São Francisco. Sim, porque areia fervendo com adubo fermentado mata qualquer planta. Portanto, na areia deixemos de lado o plantio tradicional e façamos o plantio caboclo. Pensado, executado. Mandei os meninos pelos pastos afora pegando adubo seco de vaca ou boi, conforme a preferência. O adubo é espalhado sobre a areia formando um tapete. Não deixa a areia, vinda pelo vento, entrar na planta, a defende do calor do sol na areia, segura no andar térreo e sal da maresia não o deixando chegar ao pé da planta, no subsolo. Como é seco, o adubo não fermenta ou fermenta pouco. Com o tempo e a chuva, o adubo vai penetrando na areia e a fertiliza. Com ano e meio de uso esta areia já está bastante adubada. No entanto de dois em dois meses é preciso colocar novo adubo. Bem, é isto aí, garanto que dá certo. Já andam dizendo que aconteceu milagre na Casa de São Francisco. Só não dizem se o milagre é do próprio ou dos Santos Caboclos. Quem quiser usar a receita, à vontade. Não é necessário escrever “copyright by Brazilian´s Caboclos”. Basta reconhecer seu valor e cultura.
Mas, agora estou aumentando a plantação de ervas medicinais. Consegui 5x32 metros de terra contíguos à Casa, cerquei, tirei bastante areia, trouxe terra distante, adubo mais distante ainda. Agora se trata de plantio mais ou menos convencional. Devagar vou plantando de um tudo. Inicialmente, para servir à população, a erva in natura. Mais tarde penso fazer pomadas, extratos, tinturas, xaropes, garrafadas. Depois, outros sonhos. Por exemplo fazer daqui um centro de Saúde Popular. Falo de Saúde Popular. Não falo de Medicina alternativa. O único adjetivo é popular. Por isso quero falar de uma medicina boa, como o povo merece, sem sectarismos. Não será chinesa, japonesa, induísta, alemã, francesa, cabocla, negra, alopática, homeopática. Será, de tudo isto, o que há de melhor. Medicina boa e a um preço acessível. Popular significa isto: boa e à altura do bolso do pobre.

Baixinho, peito empinado, voz forte de quem dá ordens, Seu Valério me olhou decidido mas agora triste. Como bom ex-militar, engoliu lágrimas secas. Me disse:
foi-se o penúltimo combatente do Sítio. Ele queria que eu lhe perguntasse o que já sabia: - Quem é último?
Sem falsa modéstia, com modéstia nenhuma:
- Este seu criado.
Pensei ter visto montanhas de orgulho. Quase analfabeto, enricou-se ao casar-se com D. Adélia, filha do antigo dono disto tudo que se vê, outrora imensa sesmaria de coco, boi e mangue. Hoje, além do orgulho, um rude humanismo. Boas gentes Seu Valério mais D. Adélia. Fui junto com ele ao velório, na Capela Católica. Lá estava no caixão, pequenos ele e o caixão de madeira trabalhada, o Seu Zezico. Tinha-lhe amizade. Desde as visitas que fizera depois do derrame cerebral. Sem poder sair, em cadeira de rodas, eu preferia não falar para não ouvir o que não entendia. O silêncio falava pelos olhos. Ao sair, “até breve”, um leve sorriso e um querer alçar de mãos diziam felicidade. Gostava do velho Zezico nos seus noventa e lá vai pedrada.
Um segundo ataque o levou. Agora é ele continuando a nos sorrir. Mas o corpo também é filho de Deus, é casa santa, cálice sagrado. O velório com terços desfiados, Missa celebrada. O padre tentou aliviar a situação de choro e ranger de dentes fazendo uma pregação de morte “ligth”. Parece que deu resultado. Quem manifestou isto foi Sá Lídia  de cima, sessenta anos, prematuramente encarquilhada. Também ela se finda em cadeira de rodas encomendada por outro derrame, também cerebral. Ao término da pregação Sá Lídia, a de cima, conseguiu se fazer entender:
A mais bonita pregação que já ouvi! O padre suspirou aliviado. Minutos sem choro. Infelizmente continuou o ranger de dentes. Terminada a missa todo o povo saiu para o enterro.  Acompanhantes compungidos e público em comentários ao defunto, família e acompanhantes neste então não tão compungidos. Viu-se mesmo alguns botando a língua para fora, outros mostrando os punhos fechados, outros mais mostrando a coronha de sua coragem. Dar banana não vi não. Disseram mas não vi não. Ouvi muitos comentários acerca do já agora universal bom defunto. Conheci toda sua história, da família, descendentes e amigos.
Pelo caminho outras gentes que estavam no Buraco Doce engrossaram a lenta procissão. Eram outros parentes do Seu Zezico que, muito ortodoxos, lamentavam “esta gente moderna, ô xente, onde já se viu enterro sem agrado?”. Preferiram chorar suas mágoas, não na Capela, mas no Buraco Doce, afamado e aprazível local para chorar e beber defunto, comemorar as poucas vitórias do time de futebol e outras tantas mazelas. Como este, só mesmo a Creche dos Bêbados na rua de baixo. Os dois locais famosos e movimentados. Pois bem, os advindos do Buraco Doce vinham um tanto alegres, falastrazes, bamboleantes, pouco ortodoxos, na verdade bastante heterodoxos. Juntando-se aos que já estavam caminhando, davam um ar um tanto ou quanto prá lá de normal. Não havia banda de música, nem tubas, nem trombones de vara, bumbo, nada. Nem mesmo tarol. Só algumas mulheres que cantavam e cantavam e cantavam. Ao se cansarem, descansavam puxando o terço para elas mesmas e o padre responderem. Piadas seguidas por estrondosas gaitadas seguidas de monumentais escarradas. Alguns, para consolar os parentes do falecido contavam outros casos de mortes pavorosas. Até casos de assombração foram raspados do fundo do baú, em plena luz do dia. Crianças ouviam estórias ou histórias de conquistas amorosas, chamemos assim, que o padre que também as tinha ouvido, pensou tivessem saído de algum filme considerado pornô. Vigilante austero e promotor dos bons costumes, o padre aproximou-se solenemente deste grupo que, ao vê-lo, foi se dissolvendo vagarosamente, com dignidade no porte.
Chegaram ao cemitério. Pequeno, pintado de branco-água num portão maiorzinho, em cima estava escrito Descanso aprazível. Levamos Seu Zezico ao seu descanso. Em chegando lá, súbito, lépido, pulou na cova Seu Bento. Pequeno, negro, cara simpática, Seu Bento, mais bêbado que pato em véspera do próprio féretro, puxava conversa com todos que estavam em volta. Ao percebermos que ia fazer nada ali, todos e cada um todos juntos gritávamos para Seu Bento sair de lá que era lugar do caixão mais seu ocupante. Seu Bento também gritava: “o caixão só vem pra qui passando por cima de mim”. Ninguém queria fazer uma covardia destas nem com Seu Bento nem com Seu Zezico. Estava chegando a situação a um ponto de quase explosão de emoções indignadas quando o padre, afinal(!), assumindo sua notável fisionomia de pacificador, fez sinal para todos se calarem – e se calaram, não sabe? Disse o padre com voz pausada e relativamente doce: “ Seu Bento, venha cá rapaz, venha para cima, vamos ajudar Seu Zezico a descansar”. Alguns assistentes fizeram risos de mofa. Mas Seu Bento que não olhava os assistentes mas reparava naquela hora só na cara do padre, não viu nele só a pretensa autoridade. Viu alguém que o chamava pelo nome. Estendeu a mão ao padre, subiu ao seu lado e juntos ajudaram Seu Zezico a descansar.
Como já lhes contei em carta anterior, ano passado  no domingo da Ressurreição fui claro com os fiéis presentes à Ceia Eucarística. Disse-lhes: “É meu costume visitar todos os chefes de todas as Igrejas ou Religiões para desejar, a eles e seus seguidores, Boa Páscoa. Portanto, irei a todas as Igrejas evangélicas e todos os Terreiros de Candomblé. Não peço que façam o mesmo. Além disto, estou estudando o Candomblé!. Deverei freqüentar assiduamente os Terreiros”. Falei e fiz. Penso que não houve fuxicos. Se os houve, não chegaram a meus ouvidos moucos.
Comecei as visitas pelo pai-no-santo Sô Niceto. Me impressionou. Disse-me que tocava Umbanda. Não era Candomblé. Para ele a diferença fundamental estava na utilização ou não do Exu, a figura mais controvertida do universo afro-brasileiro. A ponto de um dos autores mais sérios da chamada Umbanda Esotérica, F. Rivas Neto, denominá-lo o Grande Arcano. A concepção de umbanda de Sô Niceto, não resta dúvida, é muito pessoal. Para os candomblecistas os exus, também chamados escravos ou cargueiros, são os elementos que lidam com a matéria. São aqueles que fazem realidade, desejos e mandos dos outros orixás. São seres amorais. Fazem o que lhes é pedido, sempre através de “agrados”, sacrifícios de animais, farofa de dendê com pimenta, bebidas alcoólicas, etc. Sua caracterização com órgãos sexuais proeminentes, chifres na cabeça, lhes valeu serem sincretizados como demônios. Eles são chamados para realizarem tanto obras consideradas boas como más. Verdade que não li  ou ouvi nada sobre a possibilidade de usarem seu livre arbítrio. Claro, se são orixás eles também, encarregados (cargueiros) de fazerem a ligação entre o céu dos orixás (aruanda) e a prática terrena, são eles livres. Capazes de escolhas. Mas popularmente são considerados “perigosos”, “maléficos”, “traquinas”. Por isto, como Sô Niceto não faz trabalhos para o mal, não trabalha com exus. Além disto não permite que se incorporem marinheiros, pombas-giras, baianos, boiadeiros, além de exus. Porque bebem, e se apresentam dizendo piadas, usam palavrões, etc. Sô Niceto é rigoroso. Também o é com sua própria prática. Poderia, como alguns o fazem, trabalhar com feitiços e ganhar muito com isto. No entanto prefere continuar pobre, humilde e reto de coração. É um santo pai-no-santo. Místico, diz sempre: “sou das águas”. Filho de Nanã Buruku, gosta muito de ir à praia de tardinha para prestar sua homenagem às águas. Personifica-as como Yemanjá, Nanã, Oxum, Oxumaré. Fala a elas, lhe respondem nos sinais da natureza.
Quis fazer esta experiência a meu modo. Experiência rica de beleza e significado na simplicidade e magnificência da paisagem barroca do meu eremitério tropical. Saí de casa bem cedo, olhei o alto, vi o sol a me aquecer e dar vida (Orixalá ou Oxalá); respirei o ar a plenos pulmões (vento=Yansâ); encimando as dunas, cocos empunhados por belos e elegantes coqueiros (verde=Ossaim, das ervas medicinais; Oxossi=caçador das matas; Obaluaê=orixá da doença e saúde, que, expulso por Nanã, sua mãe, por causa da varíola, foi viver na floresta com os orixás da mata). Do alto, beleza das bonitezas, o longe mar alto (Yemanjá); o espumoso quebra-mar (Oxumaré); o sem-fim caminho junto ao mar (Ogum beira-mar). Mística e exuberante vivência do divino-natural personificado em orixás afro-brasileiros. Ao chegar onde Oxumaré beija Ogum quebra-mar, numa pedra saliente, eis um caboclo. Belo, sério, quinze anos de maturidade. O sábio adolescente à minha frente olhava fixo o mar. Olhar não tenso mas fixo, não-movente. Se olhos não se moviam, se não movia também a boca. Ele era silêncio. Silêncio transmitindo profundidade. Calça branca de algodão barato arregaçada, pés abertos no chão, braços cruzados. Sem camisa, pintando canela a paisagem azul verdoirada.
- Oi, como vai?, bom-dia, - profanei eu o espaço-templo.
- Sorriu tímido: Oi, bom...
- Como é seu nome?
Não disse seu nome caboclo: - É meu e do meu povo, me chame Rodrigo.
                    - O que faz aí?
                    - Olho.
 - O que?
 - Tudo
 - Está rezando?
 - Sim, - monossilabou.
 - Como você reza?
 - Silêncio.
 - Só isto? – manguei eu.
 E Rodrigo:- Sim o silêncio é tudo, disse ele sério, levando-me a sério.
Percebi que seu silêncio não era calar-se de fora ou do dentro de si. Era fixar-se todo no em frente. O em frente era o tudo. Repôs o olhar no tudo, em silêncio. Desviou o olhar para mim e de novo com pequeno enorme sorriso:
                  Gosto de olhar o mar quando o sol aparece ou desaparece. Mais quando aparece. O sol encontra a água, beija, faz filhos.
Não vi Rodrigo até hoje. Mas lembrei-me do amigo São João da Cruz. O caboclo místico se foi gerando um fato. O fato é que era véspera da morte-vida de São Domingos. Fiquei todo o dia como que birulado. Deitei-me cedo. Não dormi, tudo era sonho e era real. Revi a cena diversas vezes. De repente, que nem raio, um forte impulso para levantar-me, pegar papel e caneta. Escrevi mais rápido que a escrita:
Parição
Homenagem a Pai Domingos
No Nada
o tudo
que o Nada
prenhe é o Cheio.
O Tudo, por primeiro existiu
como Nada e este
no mais pleno Vazio
encheu-se
parindo o Tudo

Certo,
da dor a flor
do carvão o arco-íris
do barro a menina
da seca terra o manancial
do areal o manguezal
do barro outro
o outro Ser.
Gente para vazar
e locupletar Sendo.

Amigos, do meu eremitério tropical penso em vocês, penso em Deus, tento me silenciar. Oxumaré no quebra-mar fala.

Frei  Fernando de Brito O.P.

Saudades!!!

Amigos e Amigas!
Peço desculpas pelo o blog ter passado esse tempo sem ser atualizado. Agora todas segundas-feira, depois das 19h estará sempre com uma postagem nova.

Divulguem, compartilhem!!!
Abraços


quinta-feira, 1 de julho de 2010

Carta do Sítio Nº 05

Sítio do Conde, 28 de junho de 1997

Amigas(os) e companheiras(os) de caminhada,

Ano passado, mais ou menos neste mesmo mês, fui conhecer o sertão. Estava tudo seco. A seca já durava dois anos. O pessoal do lugar já viveu seca de cinco anos, não sei como. Gado magro, gente magra; no dia em que cheguei tinham matado o último bode (festa-oásis no meio do deserto). Plantas esturricadas que mal tinham nascido. Só existia o que era nativo: cabeças de frade, rosas de Oxalá, quiabentos (ou sagração de Oxalá) para fazer cercas mais mortas que vivas. Na verdade aquilo que servia para cercar eram os espinhos. As palmas, o gado havia comido enquanto existiam. Só viviam os mandacarus - símbolo de vidas ressecadas gotejando teimosa esperança. A caatinga, vestimenta do sertão, quando seca, é o deserto. Tudo vai embora, de um jeito ou de outro. A rapaziada com a moçada vão-se para São Paulo, Rio ou Santos. A seca é terrível.
Voltei ao sertão este mês. Desde janeiro chove e muito. Os filetes de água, que não vi ano passado, agora eram rios que chegaram enchente onde moro. Tudo verde, flores e mais flores. As folhas cobriam os espinhos e a aridez se tornava boniteza. Como imaginar aqueles espinhos enormes dando flores e mais flores? Muito feijão. E milho. E aipim. A comida do baiano sertanejo. Vai sobrar. O preço cai, e vender quase não compensa. Só para não perder de todo o trabalho. Lembrei-me dos filmes e livros sobre o sertão nordestino: o Sertão vai virar Mar e o Mar vai virar Sertão. Bem, o Sertão virou Mar. Isto eu vi. Testemunho.
Aqui no Sítio, meu microcosmo, estamos na Festa de S. Pedro. Todo o mês de maio rezamos a novena de Nossa Senhora. Já fizemos a Festa de Santo Antônio e depois a de São João Batista.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi Festa . A afirmação de que seja ópio do povo - falamos tantas vezes assim a respeito do Carnaval - tem seu aspecto de verdade. Claro, a gente não erra sempre. Mas como diz o velho Hegel, filósofo mais velho que o velho Marx, toda afirmação contém sua negação. Portanto, da expressão ópio do povo suguemos a oposta, alegria do povo. Legítima. Não como um ópio degenerado em alegria, mas uma alegria afirmada na aspiração popular de viver a vida bem vivida - se possível. Façamos o impossível.
E há mais. Sempre há um leite materno para a criança sedenta. Pelas anteriores Cartas do Sítio, deu para perceber, aliás com bastante clareza, não é? - que ando estudando a questão de como católicos vivem o Candomblé ou como “candomblecistas” vivem a sua Religião Católica. Não estou dizendo como devem viver. Me interessa aqui estudar como vivem de fato este fato no meio popular. Não quero estudar o Candomblé ou a Umbanda. O primeiro, principalmente o de origem ioruba, estabelecido focalmente em Salvador - Bahia, tem sido muito bem estudado do ponto de vista sócio-histórico por autores como Pierre Verger, Roger Bastide e outros de jaez o mesmo. Deus me livre de me meter neste meio. O que um rato faz no meio de elefantes? Bem, o rato, além de meter medo nos elefantes pode dizer a estes: falta estudar outra cultura tão importante quanto a angolana. Nossas raízes culturais africanas não são só iorubas. Englobam culturas e etnias africanas diversas. Quanto à Umbanda, a chamada Umbanda popular existe desde a década de 20, mas obras mais profundas apareceram a partir de 1970 com autores como W.W. Matta e Silva, Rivas Neto (os principais) com a chamada Umbanda esotérica.
Vamos deixar de lado o aspecto teórico do religioso em si e vamos para o que vou chamar de rituais afro-brasileiros. Por este nome eu quero chamar os diversos rituais populares que existem em Terrei-ros, Tendas, Salões, Barracões ou que nomes quisermos chamar. E, para entrar no problema preci-samos estudar de perto isto: o sincretismo. O sincretismo não acontece só no Brasil. Na própria África, uma nação, a atual Nigéria (ioruba) sincretizou Orixás daomeanos (Nanã Burukê, Obaluaê e outros menos conhecidos) rebaixando-os. No Daomé, Nanã (sincretizada no Brasil como Sant´Ana) exercia papel tão importante quanto Oxalá (sincretizado no Brasil como Nosso Senhor Jesus Cristo). Sob a dominação ioruba, Nanã passa a ser um Orixá rabugento e pouco simpático, uma espécie de “sogra”. E seus filhos têm um papel não muito simpático como Obaluaê, o Orixá da varíola. No sincretismo brasileiro ele vai conservar este caráter e ganhar outro, o da cura da varíola e, em certos lugares, será visto como o Orixá da saúde, quase se confundindo com Ossaim (a cura pelas ervas medicinais) Exemplos como este existem muitos.
Por sua vez, ao chegar ao Brasil com os escravos, o sincretismo se enriquece. Os escravos encontram os índios que na verdade se chamavam caboclos. Daí o aparecimento deste elemento nos rituais afro-brasileiros. Como a vinda dos escravos corresponde ao período aventureiro das grandes nave-gações, se supõe derivar daí o aparecimento dos marujos nos rituais. Mas outro fato intra-africano ocorre no Brasil. Nos países de origem, cada povoado possuía o seu orixá, um só. Ao chegarem ao Brasil, por razão de segurança dos bravos e valorosos escravocratas, os escravos são misturados, não permanecem juntos os da mesma nação ou família. São sempre misturados. O que resulta - males que vêm para o bem - num ritual em que diversos orixás, exus, caboclos, marujos, boiadeiros (cultura sertaneja) convivam num mesmo ritual. E acresce (outro sincretismo) que figuras africanas, já vivendo no Brasil, tornam-se, diríamos nós, santos por seu sofrimento e por vidas exemplares dentro do cativeiro. São os pretos-velhos e as mães-pretas, as tias-Maria, Anastácia, etc.
Podemos ver que o sincretismo não só acontece no Brasil, mas já é existente nos países de origem. Muito longe de “manchar” uma suposta “pureza”, o sincretismo enriquece os diversos rituais. Se formos estudar o sincretismo cultural existente em São Paulo, por exemplo, poderemos descobrir como é enriquecedor sair deste imenso liqüidificador que espreme mentes e corações humanos, resultando um belo e saboroso suco antropofágico. Mas se nós católicos, olharmos para o próprio umbigo, vamos ver que talvez o período mais rico do cristianismo esteja nos nossos três primeiros séculos de vida em que sincretizamos as grandes festas do paganismo. Ou nós, dominicanos, do alto de sete séculos de tomismo não sincretizamos Aristóteles, ou antes de São Tomás, Santo Agostinho a Platão?
Parto do seguinte: há católicos do meio popular que são “candomblecistas”; há “candomblecistas” que são católicos; há muitas pessoas que nasceram e cresceram freqüentando os dois rituais e vivem sua fé em, principalmente, santos e orixás identificados. Tomo o caso da minha vizinha. Ela é assídua à Igreja Católica e o é também ao Candomblé onde é filha-no-santo. A expressão filha(o)-de-santo ou mãe(pai)-de-santo não é a melhor. Ninguém é mãe(pai) ou filha(o) de santo nenhum (no sentido de “fazer a cabeça” ou ter a “cabeça feita”). Na Umbanda se diz mãe(pai) ou filha(o) de fé. Ou, acho até melhor mãe(pai) ou filha(o)-no-santo. Mas vamos deixar de lado estas firulas, para não usar a palavra mais indicada mas um tanto virulenta a ouvidos e mentes sensíveis. E ataquemos o que é sério. Minha vizinha (o ataque seria não a ela mas à questão em foco), na festa de Santo Antônio (sincretizado como Ogum na Bahia-Brasil), foi à missa, comungou e ao sair da igreja disse assim: cumpri a obrigação na minha Igreja. Agora vou ao toque (ritual) do meu candomblé. Para ela não há razão de se questionar. Participar das duas obrigações é normal e deve ser feito. Para ela o sincretismo existe. Ela, ao dançar no Terreiro cultua Ogum e Santo Antônio ao mesmo tempo, numa só pessoa e num só movimento. A diferença está no ritual e no corpo doutrinário e dogmático, não na mística. É precisamente a mística presente no ritual que o popular vive. Voltando ao exemplo da minha vizinha, o que faz a ligação do orixá e do santo é o sincretismo. A análise só aparece no instante de se fazer a distinção. No meio popular, a análise não é feita. È vivida a pessoa-sincrética. Vivida, vivenciada, misticizada. Autores sérios dizem que o sincretismo não existe, seria uma capa-esperteza para iludir os donos dos escravos e por conseqüência os católicos de hoje. Penso que a capa-esperteza durante muito tempo existiu. No entanto, no meio popular o que existe é um autêntico sincretismo.
Isto aí, amigos. Do alto do meu eremitério tropical à beira-mar plantado, não fiquei (totalmente) parado. Caminhando pela veia aberta do popular, espero tenha sido um bom intelectual - pelo menos orgânico. Creio que toquei com o dedo numa das feridas-chave para a compreensão do povo: o fato sincrético vivido. Resta aos bons intelectuais estudarem o sincretismo existente no nosso meio. Acho que será enriquecedor. Desejo aos corajosos um bom trabalho.
Durante uma reza - toda cantada - no dia de Santo Antônio - me veio à cabeça isto: o que estou fazendo, o que vivo, e estou vivo:

O Senhor
meu Senhor

No ôco
do páu-ôco
a Vida
vivida
morrida
ressurgida
a Vida

O Senhor
é presente
o meu Senhor (O ôco do pau oco)

E é deste eremitério tropical que lhes desejo a todos em cada um e a cada um no todo, boas e alegres festas juninas e outras.

Frei Fernando de Brito op

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Carta do Sítio nº 4

SÍTIO DO CONDE, 04/03/97, DENTRO DA TERCEIRA SEMANA DA QUARESMA

Amigos e amigas,

Até agora já escrevi 5 cartas circulares: a de nº 1, escrita a 20/06/95, dizia da minha mudança para Valença. A de nº 2, escrita de Belo Horizonte a 24/10/95 falava da mudança forçada de planos: por motivos estranhos à minha vontade e compreensão, eu não iria mais para Valença. A carta circular nº 3, de abril de 1996, anunciava minha vinda para Sítio do Conde. A de nº 4, de setembro, falava de diversas coisas, sobretudo das plantas na areia da Casa de São Francisco. A de nº 5, do Sítio do Conde era uma carta natalina pouco ortodoxa mas, creio eu, bastante teológica. As reações foram as mais diversas, desde elogios escrachados, passando por publicações, até broncas de absoluta indignação e abominação. Mas quando a gente faz alguma coisa que mexe com o povo provoca reações assim, não? Eu teria ficado triste se não tivesse havido nenhuma.
Ao começar a esboçar esta Carta pensei que o nome Carta Circular é muito frio e impessoal. Já que estou em Sítio do Conde, ou as cartas se chamariam Cartas do Sítio ou Cartas do Conde. Ora, seria muita pretensão minha, acompanhada de forte frescura aristocrática escrever Cartas do Conde (quem? eu?), ou se poderia pensar que eu sou um tarado em Conde (a pessoa ou a fruta do Conde?). Olha o quiproquó, a ambigüidade do título. Certamente pensariam de mim coisas estranhas e, como quem conta um conto, aumenta um ponto, resolvi, talvez inspirado pela sabedoria do Salomão (o turco que vende roupas especiais para todo mundo na Feira aos sábados na cidade chamada Conde), portanto, chamar estas cartas mais simplesmente Cartas do Sítio. Pode-se pensar no Sítio do Pica-pau Amarelo, na terrinha pequena com que tantos sem-terra sonham e lutam, no sitiante que labuta de chuva a sol na sua terra-coração, naquele que está sitiado por opressões de toda espécie. Além disto, não deixa de ser mais poético e menos pernóstico, certo? Acho melhor deixar de fora as cartas circulares números 1 e 2 porque “mijam fora do caco”. Para os puritanos, devo dizer que, ao entrar para a tradicional e vetusta Ordem dos Dominicanos, meu Padre Sub-mestre usava esta expressão com muita propriedade, em alto em bom som, a torto e a direito. Até hoje sigo as lições aprendidas no Noviciado (as que gosto, claro). Sendo assim, as Cartas Circulares de números 3, 4 e 5, serão dagora em diante denominadas Cartas do Sítio nºs 1, 2 e 3. Deste modo, esta que está começando a ser escrita (espero terminá-la), corresponde à Carta do Sítio nº 4. A explicação foi um pouco longa mas me lembro do célebre escritor, cujo nome, por conveniência, me esqueci, que dizia: quando falta assunto, fale mais.
Trabalhar com leigos é outra coisa. A falta de Direito Canônico e a posse da Teologia do Bom Senso talvez permitam às pessoas serem mais aptas a serem cristãs, ou simplesmente gente. Não seria por isto que Jesus escolheu, pescadores, “laranjas”, e outras pessoas desclassificadas para discípulos? Não conheço nenhum fariseu ou doutor da Lei que tenha, como tal, permanecido seu discípulo. Que Sabedoria, heim Mestre?
09/03/97, início da 4ª Semana da Quaresma. Imagino que estejam perguntando: O que este cara está fazendo de bom neste fim de mundo? Bem, fazer a gente sempre faz alguma coisa: conversa, amizade, ama as pessoas, ajuda na medida do possível. Reza, vai ao mar, anda na areia da praia, nada, pega vento, sol e sal. Se suja e suja a casa de areia. Balela xinga, a gente sorri ou não. Agora estou comendo em casa. Balela traz um pouco de arroz e feijão e eu completo com enlatados (fazem muito bem à saúde) e não enlatados (dão um trabalho!). Leio, vejo televisão, vida boa, alegre, saudável. O silêncio, a música, a solidão. E a muriçoca. Que bom! E eu não sabia. O silêncio, sinto como a voz de Deus, a solidão sua presença e a música seu odor. A muriçoca, bem deixo aos teólogos da Libertação a séria questão das muriçocas. É isto o principal. Para tal seria bastante estar aqui e agradecer ao Bom.
Aquele plano de saúde, do jeito que pensei, não foi à frente. Mas não desisti. Foi feito algo no jardim. Nele, o principal no campo da saúde, são as rosas. São as flores que transmitem mais energia. Não é só poesia ou esoterismo mas Ciência. Plantem rosas. Em qualquer lugar. Também nos apertamentos, em caqueiros (vasos de barro). Qualquer cor, tamanho, perfume. Mas plantem rosas. Depois, já tenho o Mastruz (Erva de Santa Maria), o Doril (ou Novalgina), a Erva Cidreira, o Oxalá (Boldo), o Pinhão Roxo (contra mau-olhado), o Girassol que é também comida de papagaio (o animal que quer deixar de ser irracional, como muita gente que conheço) e a Rosa de Oxalá. A Rosa de Oxalá ou Capucho de Seda tem uma seiva que é remédio (precisa pesquisar cientificamente). E mais tarde fazer os florais baianos.
A cabeça, nas horas vagas, que não são muitas, anda a mil, pensando em como começar com as ervas propriamente ditas medicinais no terreno contíguo a casa. Estou pensando em simplesmente cercar e plantar. Começar a servir à população. Também, ir às casas e colher receitas e outras ervas. Por exemplo, a rua da Pipoca, à tarde, fica cheia de meninos raspando a cabeça. Não é Candomblé, não. É para, depois de bem raspadinho, pegar o cabelo no chão, botar fogo, pegar as cabeças dos meninos ou meninas, passar cachaça, amarrar um pano por 3 dias. NÃO TOCAR FOGO. Sim, porque o remédio é para matar piolhos, não é herodiano, não. Não resolve. Precisa atacar os centros de triagem e distribuição dos piolhos, principalmente escolas e casas onde moram 20 ou 30 pessoas.
Remédio contra bicho de pé (preventivo e social)? Basta prender os porcos.
Trabalho tem; disposição, às vezes. O tempo é que é difícil. Mas ainda faltam os recursos humanos. Posologia dos remédios, indicações e contra-indicações. Diagnósticos.
Como disse na Carta do Sítio nº 3, no que mais caminhei foi o Diálogo com as outras Religiões. Fácil com os Cultos Afro-brasileiros (Umbanda e Candomblé). Difícil com as Igrejas Evangélicas. Agora apareceu a Assembléia de Deus. O sectarismo, nosso e deles é muito grande. Não nos enganemos. Ainda existe pra nós o “fora da Igreja não há salvação”. Mais sutil, mas há. Mas é sempre possível uma amizade, visita, conversa, etc.
Minha Quaresma tem sido vivida em continuidade com o Natal. Lembram-se? Balela apanhava, as crianças apanhavam, até que, “de repente, não mais que de repente”, o Espírito resolveu continuar soprando e Balela permitiu-se sentir seu sopro. Não agüentou mais, se negou ao marido, agüentou ameaças de morte, a filhinha de 4 meses apanhou. Foram tempos de muita tensão. Quantas vezes não tive de me fingir de corajoso para buscar Balela e as crianças para dormirem em minha casa. Sempre vinham também seus filhos maiores e os irmãos. Mesmo assim o marido dizia pela cidade que sua mulher e o padre estavam transando. Até que Balela e os filhos saíram de casa e foram morar com a mãe. Acho que no barraco da mãe estão umas 30 pessoas. O dono da casa de Balela, Sr. Valério, entrou no caso. Baixinho, semi-analfabeto, casou-se com a filha do dono de tudo antigamente. Ainda é rico. Ir à Justiça morosa e baiana acemista significaria levar de 5 a 10 anos para resolver a questão. Polícia? Fazer o quê? Bater e soltar? Seria pior. O dono da Casa, como todo mundo que tem dinheiro, fala gritando e é acostumado a ser obedecido, parece autoridade. Não é, mas todos o consideram. Bordão, com a presença do padre como testemunha, na frente do Sr. Otávio, deixou Balela tirar todas as suas coisas da casa. E no dia seguinte a derrubaria. Já estava caindo mesmo, não tinha chaves e seria sempre ocasião dele importuná-la. Ele não cumpriu o prometido. Fizemos um mutirão e derrubamos a casa. Agora, com ajuda daqui e dali, Balela está comprando o material para construir uma nova, com escritura e tudo.
Nisto tudo senti Balela e filhos como a figura de Jesus na tortura, na calúnia, na cruz. Eu me senti uma Verônica, mesmo sem saber cantar. Pelo menos sendo solidário apresentando-lhe o Sudário para enxugar sua dor (este sudário, mais que verdadeiro). Não é que tenha passado o perigo. Bordâo tinha saído para pescar durante 15 dias. Já voltou. Como todo covarde, só enfrenta abertamente mulheres baixinhas e crianças pequenas. Mas é traiçoeiro. As trevas ainda pairam sobre o ar, querendo torná-lo pestilento. Mas a luz no túnel já se torna mais nítida. Parece que a pedra do Túmulo já está sendo rolada. A Ressurreição, a Vida saindo da Morte é um Parto difícil e todo parto é doloroso. Mas se a Vida vem, empurrada pelo Senhor da Vida, alegremo-nos. E na alegria, é preciso sorrir. A maldade tem sempre sua burrice. E esta burrice, muitas vezes é jocosa. Andando pelo povoado, pelos butecos, os jogos de dominó e truco em esteiras pelas ruas, Bordão dizia que sua mulher era amante do padre. Ora, no Nordeste, duas coisas pedem morte: “mandar para a baixa da égua”, e chamar de “corno manso”. Ri-me a valer. Mesmo não sendo verdade, Bordão se chamava de “corno manso”. E não se matou, não matou ninguém, nem pediu que o matassem. Talvez porque já seja um morto-vivo. Pode ser estranho mas existem, sim, os mortos vivos.
Bem, gente, isto é um pouco do que tenho vivido aqui na Capital do Mundo (Mundo? - Do Cosmos). Daqui mesmo eu pego um Raio de Luz do Ressuscitado e vou abraçá-los. Boa Páscoa da Ressurreição!
Até quando Ele quiser e onde quiser

Frei Fernando de Brito - OP

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Carta do Sítio nº 03


Sítio do Conde, Natal
Começa 1997


Na pesquisa amadora, que fizemos aqui, sobre as doenças mais freqüentes, muitas respostas faltaram. Uma delas foi a bebida. Povoado pequeno, pouca coisa a fazer, nenhum lazer, a não ser aqueles que dependem de criatividade. A bebida cresce em importância. Temos botecos famosos: já falei da Creche dos Bêbados; outro é o Buraco Doce. E o mais novo, o Rei do Gado. Os homens, ou grande parte deles, chegando em casa bêbados, batem nas mulheres e filhos. As mulheres descontam nos filhos. As crianças brigam entre si.
Balela - é ela quem toma conta da Casa de São Francisco - já ganhou o terreno para construir sua casinha, precisa comprar o material. Com 7 filhos - os dois mais velhos apanhavam tanto do marido de Balela que tiveram de sair de casa - ela trabalha muito mas o dinheiro só dá para comer mal. O marido bebe. Quando está são (é raro), é simpático, prestativo. Mas seu estado normal é bêbado. Balela gosta dele e por isto não se separa dele. Em frente ao casebre passam vacas, bezerros e jegues famintos procurando qualquer coisa para comer. Comem lixo. È verão e a areia quente não permite o nascimento de capim.
Podemos ver, nestes personagens, os personagens do Presépio? Talvez, se deixarmos de lado nossos esquemas usuais e idealistas. São o anti-Presépio. São as pessoas que precisam de tudo. São os amados por Deus. E porque são amados por Deus, Ele quer que deixem de ser o anti-Presépio para se tornarem gente, Sua Imagem mais clara e distinta.
Como Balela e sua família, são tantas as Balelas nos países empobrecidos! Com a falência dos go-vernos em resolver os problemas sociais, podemos nós em 1997 fazer algo por estes nossos irmãos de predileção?
Nosso Natal será autêntico e 1997 será um Bom Ano se fizermos o que pudermos para mudar a situ-ação.
Desejo a vocês e a mim que entremos mais profundamente no desejo de Deus para trabalhar por seu Reino de Amor e Justiça.
O irmão de todos

Frei Fernando de Brito OP

quinta-feira, 13 de maio de 2010

CARTA DO SÍTIO Nº 2

Sítio do Conde, 26 de setembro de 1996

Amigas e amigos,

Agora, dia 27, dia dos Santos Cosme e Damião, haverá caruru por todos os lugares da Bahia para as crianças. É a oferta aos Santos. Bonito, não? Ofertar porque se gosta, para dar alegria, não para pagar alguma coisa recebida. Fica longe o “é dando que se recebe”. Mas é o dia também de começarmos a Festa do meu Padrinho São Francisco. Aliás, moro na sua casa. Não deve ser no seu quarto. O meu tem muitos livros, artesanato, bugigangas variadas. Se é que ele tinha quarto, seria certamente pobre, despojado, austero, nu como nasceu e se vestiu ao fazer sua opção pela “irmã pobreza”.
Betto, Ivo e eu saímos da prisão política no dia 4 de outubro de 1973. Fiz de São Francisco meu padrinho, padrinho da minha liberdade. Não é ele o Livre? De tudo?
Cada vez dou maior importância à “achologia”. Acho que, antes que eu o escolhesse, ele já era meu padrinho e acho que os “achos” contêm mais certezas do que as ditas certezas “científicas”. Precisamos recuperar a importância das intuições. Elas são verdadeiras inspirações do Espírito de Jesus. Acho que expressamos estas inspirações nos nossos importantíssimos “achos”. A Festa, bem, a Festa, vamos começar amanhã, sexta-feira, às 4 horas da manhã com uma Procissão Penitencial que vai andar por todo o povoado. Nos outros dias vai ter de tudo: outras Procissões, diversas Missas, lavagem da escadaria da Igreja, cada dia a novena é preparada por um grupo leigo. Fico “assuntando” e de vez em quando faço alguma coisa que só o Padre faz... em público.
A Casa de São Francisco não está pintada, as portas e janelas em precário estado, mas, junto com dois meninos do bairro, “pipoqueiros”, estamos fazendo o jardim na frente e atrás da casa. Muitas rosas (transmitem muita energia). Aliás, vocês que respiram poluição, caneta e papel na mão. Eis a receita da minha amiga Ione, de Belo Horizonte: peguem uma rosa vermelha, daquelas pequenas, deixem-na secar na sombra (não a ponham em saco plástico). Quando começar a soltar um pouquinho de óleo, fervam-na em um litro de água. A água deve estar pelando, depois de ferver. Inteligente, não? Por isto mesmo, ou seja, por estar pelando, e por serem inteligentes, deixem a água esfriar e ponham-na na geladeira. Peguem destes vidros com conta-gotas. Não há medida. Quando sentirem as narinas congestionadas ou irritadas, pe-guem o conta-gotas cheio do líquido e ponham em cada narina. Não é preciso pagar, nem a mim, nem à Ione. Quando a água na geladeira apresentar mofo, jogar fora e fazer mais. Ou acabar com a poluição logo, logo. Depois, façam uma oferta gostosa ou bonita ao seu Santo de predileção, sem pedir nada, sem agradecer, mas porque gostam do Santo.
Mas a casa de São Francisco é gostosa. Além da presença dele, afinal é o dono, a casa é grande, espaçosa, muita luz, o ar e a maresia, vindos do mar aqui pertinho. O ar corre sempre. Uso a sala de jantar, a cozinha, e meu quarto, além da varanda de trás e da Capela, em cima do meu quarto. Além das rosas, que é difícil pegar aqui, que é areia pura, plantei Oxalá (boldo) e Amalá, contra formigas, pinhão roxo contra mau olhado, doril (verdade!) contra... o óbvio, ora. Do sertão, palma, cabeça de frade, rosa de Oxalá, rosa negra, e estou esperando o mandacaru. Daqui, o mato que dá flores lindas e que nasce na areia pura e bolente de dia. No meio do quintal, o coqueiro, do qual fiz o símbolo de Jesus nas praias. É o alimento do pobre. Agora os ricos não se importam do pobre comê-lo (o côco, gente) porque o preço no Brasil e exterior, caiu muito. Para enfeitar mais, fiz caminhos tortuosos com cocô de vaca. É verdade que o povo daqui na sua infinita sabedoria fala é merda mesmo. Muito mais poético, não concordam? Ai!, ia me esquecendo. Tenho caqueiros(vasos de barro) com folhagens lindas. Uma delas é o famoso Sagrado Coração de Jesus, que, além de ser maravilhoso, também é remédio.
Aqui também no interior, há muita coisa parecida com as Alterosas. Logo ao chegar ao povoado, vi um beco logo na entrada da cidade. Me informaram, bem baixinho que se chamava “Faiado”. Perguntei o porque de “Faiado”. Pausa, silêncio, cabeça baixa, faces mais vermelhas que o queimado de sol. E o suspense aumentando. Quando perguntei aos homens, também se repetiu a mesma coisa. Bem, eu tinha de estrear como Sherlock Holmes, sem boné, capa, guarda-chuva e tílburi. Pus o chinelo de dedos, a camiseta e o short. Tomei fôlego e entrei no fadado e calado “Faiado”. É um beco de moradores pobres, crianças, cachorros, e esgotos a céu aberto, pelos quais pagamos. O já famoso e preocupante, fantasmagórico Faiado acaba atrás da rua da Pipoca. Ah, mas o novelo começa a se desembaraçar. Logo no início do, neste momento, terrificante Faiado, tem outro beco. Outro? Sim senhores, outro, estreito (ainda bem que era dia). Sai do Faiado e acaba, ou começa, não sei, na frente da rua da Pipoca. Seria pista falsa? Às pessoas que passavam eu ia perguntando. Era só escândalo. Logo um padre perguntar isto! Pensei que trariam cadafalso, guilhotina, cadeira elétrica, forca, pelotão de fuzilamento ou mesmo a peixeira, muito mais eficiente. - Não pode falar, me diziam. A muito custo, tenacidade, fibra, técnica, enfim, tudo o que um jogador de seleção deve ter, encontrei um menino, com sua candura, ingenuidade, e muita malícia que abriu a boca sem dentes e me disse “É Petê Faiado, ó xente.” Menos mal. Passo gigantesco para a elucidação do mistério digno de um Hercule Poirot. Mas ainda fiquei quase na mesma. Só deu para pensar que era o beco do meretrício. Afinal, sou mineiro e na minha terra tinha “O Beco da Sinhaninha” e um outro, igualmente competente, a “Esquina da Anita Caoia”. Mas este mês agora, passava (por acaso, hein!) pela Creche (dos bêbados), um bar muito afamado. Só tem pinga. Abre às 7 horas para o café e fecha quando sai o último cliente. Pois bem, na Creche ouvi alguém dizendo que o Beco em questão, registrado na Prefeitura do Conde, chama-se Rua do Pentelho Faiado e não é zona de meretrício. Como sempre disse, eu mesmo, cada qual com a sua idiotice., às mais das vezes, saborosa. Agora quero descobrir a história de que, como e porque o nome(personagens reais e tudo), antes que os políticos, sempre tão decentes achem o nome imoral e coloquem na famosa rua o nome de um FHC ou ACM que, se não são imorais!?, são mortais, graças a Deus.
Bem, deixando as coisas sérias de lado e espairecendo um pouco, preciso dizer que o Curso Bíblico não deu certo. Acho que fiz o que devia ter feito - desta vez. Ao terminarmos as festas de maio e junho, fiquei quieto para ver se a Comunidade pediria o Curso oferecido em fins de maio. Ninguém disse bulhufas, e nem eu. Mas a partir da realidade local, sem médico, sem hospital, o ambulatório só tem Mercúrio Cromo e aparelho de tirar pressão. Nem esparadrapo. Ah!, tem uma atendente de enfermagem e uma faxineira - são honestas, viu? - fazem o que podem. Às vezes, pobres, dão do que não têm para comprar alguma coisinha. Agora mesmo tivemos um surto de Dengue. O maior artigo consumido foi Tylenol. A Dengue é fogo, senhoras, senhores e senhoritas. Mesmo vindo numa epidemia branda. Não foi hemorrágica. Olha que o hospital do Conde, sede do município, fica a seis quilômetros de distância e é igualmente precário. Pensamos fazer um movimento de Saúde Popular. É tempo de eleições. Estamos fazendo algumas coisas que não criem disputas políticas internas. Fizemos uma pesquisa em todo o povoado com o objetivo de descobrir as doenças mais comuns, estruturamos, mais ou menos, o movimento e escolhemos seu nome: Movimento de Saúde São Francisco de Assis. Temos uma Coordenação composta por uma líder estudantil, por uma senhora que já trabalhava na Pastoral da Criança, e eu que não entendendo nada, sou o Bolo da Festa. O questionário, amador, era passável e fomos a todas as casas do povoado. Dos moradores, claro, não dos turistas. O pessoal do Candomblé e Umbanda colaborou. O Obreiro da Igreja Universal disse que tinha de pedir licença ao Pastor, mas os fiéis já tinham colaborado. A Igreja Adventista respondeu cupolisticamente que cada Igreja faz seu trabalho, ou seja, “cada macaco no seu galho”, mas a grande maioria dos fiéis colaborou. Agora, vamos começar pelo mais simples. A parteira, com duas senhoras que já tiveram bastante filhos, vão visitar as gestantes todo mês para dar conselhos diversos, preparar para o parto ou com a parteira ou no hospital do Conde, e depois participar da Pastoral da Criança, a mãe e a criança. Agora, o mais difícil: pensar como atingir os problemas sanitários públicos, sem recursos financeiros e humanos. Aqui faço um apelo. Aqueles que já trabalham com Movimentos de Saúde Popular, mandem-me livros, receitas, dêem endereços, digam como trabalham, como conseguem recursos, quais métodos de trabalho usados, etc. Como erradicar o piolho, a Dengue? como acabar com a verminose, as doenças causadas pelas condições de trabalho na lagoa ou no mar sem a proteção adequada? Isto num governo FHC e no Estado em que ACM manda. Uma pista são as plantas medicinais. Mas é necessário mais.
O que nos anima e nos torna cada vez mais teimosos são a esperança, a persistência, o Deus-em-nós. São o fundamento de tudo.
Que o Padrinho interceda por nós junto a Jesus neste caminho. E leve meu abraço a cada um de vocês.

Até outra vez

Frei Fernando de Brito, OP

terça-feira, 16 de março de 2010

Carta do Sítio número 01


Sítio do Conde, 19/04/96
Amigas e Amigos

Afinal apareci na Diocese de Alagoinhas, nordeste da Bahia, divisa com o Sergipe através do famoso Mangue Seco. Ainda não vi a Tieta do Agreste, se ainda estiver viva. Sítio do Conde é um povoado de mais ou menos 1.700 habitantes, à beira mar, servida por ônibus para Sergipe, Salvador, Alagoinhas, Feira de Santana. Moro na Rua da Pipoca. Há duas interpretações para o nome. A primeira diz que é onde, à noite sobretudo, pipocam meninos. A outra é de que aqui era o lugar privilegiado de uma planta chamada pipoca. Quem for amante da exatidão histórica, fique com a segunda versão. Quem preferir o pitoresco, faça como eu e fique com a primeira. A casa onde moro é casa para descanso e retiro dos padres da Diocese de Alagoinhas. Está em reformas. É uma casa grande, espaçosa. O quintal é grande, bonito; pela frente podemos ver um grande coqueiral, uma lagoa cheia de mariscos, camarões e esquistossomose (este não dá para ver). Meninos brincando e brigando, coqueiros e mais coqueiros enfiados na areia. Casas pobres de frente e de fundos, casa de Candomblé separada da Igreja Universal do Reino de Deus pelo Bar do Fernando (o outro, não eu). Pela esquerda vai-se à Barra do Itariri (aldeia de pescadores). Pela direita vai-se à Rua da Mangueira que sai na Rua de Baixo. Da Rua de Baixo, subimos (é melhor) à Praça do Jegue (ou do Álcool). Daí podemos ir à Rua de Cima ou ao Areal ou vamos à Rua da Praia. A Rua da Praia acaba no Marzão. Quem nada bem e não mente diz que já chegou à África. Mas eu acho que é história de Pescador. Por falar em pescador, existe um esforço de trabalho com eles na Colônia de Pesca. A Igreja tem um núcleo que faz o que pode. E há um pequeno trabalho de Pastoral da Criança que consiste em merenda e pesagem das crianças. O padre de Conde, ao qual faz parte Sítio, celebra uma vez por mês aqui. Além do Sítio atende Rio Real (município) e Jandaíra (outro município) que, com seus povoados, para dar um atendimento precário, ele tem de percorrer 3.000 km. Eu vou ficar só em Sítio. Cheguei 5ª feira antes da Semana Santa. Celebrei a Semana Santa toda e avisei ao povo católico que faria visitas aos chefes das outras Igrejas para desejar-lhes Boa Páscoa. Já fui à Igreja Adventista do Sétimo Dia, à Igreja Universal do Reino de Deus, iniciante, muito pobre. Já fui a dois dos três terreiros de Candomblé e ainda vou ao 3º e a duas pessoas que fazem “Mesa Branca”, que não é tão branca assim. Planos? Começar do início. Para o pessoal da Igreja Católica, além da Missa Dominical, quero fazer um dia por semana de leitura da Bíblia, procurando entender o Evangelho deste ano, na realidade do Sítio. Na medida do possível, ajudar a Colônia dos Pescadores. E o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Conde, que está começando o mandato agora pediu um curso para entender o que é Sindicalismo e como planejar a sua atuação. Mas o que mais me preocupa é a situação da saúde. Sítio não tem médico. Seu ambulatório atende precariamente e a médica do Conde vai lá uma vez por semana. O Hospital do Conde é muito pobre e, na maioria das vezes, as pessoas têm de ir mais longe para fazer coisas simples. Penso fazer alguma coisa em termos de Medicina Popular. Agentes de Saúde Popular que, com o tempo, possam aprender a fazer massagens relaxamento, enfermagem, parto, cura pelo barro, ervas medicinais, etc. Enfim, começando do princípio, fé em Deus, amor à população, esperança de que vai dar certo, chegar onde Deus marcar.
É isto aí, meus amigos. Agora é cedo para dizer mais.
Bem amigos, continuem a rezar por mim e pelo povo do Sítio. Estou muito feliz aqui. Sinto que o lugar e o povo me trazem aconchego e me fazem orar.