sexta-feira, 31 de julho de 2009

Frei Betto lança Livro sobre Frei Fernando

Mais um documento inédito e de inestimável valor histórico da "via crucis" provocada pela Ditadura Militar do Brasil vem a público agora. É o relato de Frei Fernando de Brito obre os quatro anos em que viveu preso, que ganhou tratamento literário de Frei Betto, que o publicou pela Editora Rocco.
Quem se interessar em conhecer a verdadeira face do regime militar e o Brasil dos "anos de chumbo", DIÁRIO DE FERNANDO é um testemunho vivo, comovente, de uma de suas vitimas. Diz Frei Betto: "Está tudo lá: as torturas de prisioneiros, colegas que desapareceram sem deixar vestígio, a desumanidade e monstruosidade dos algozes, as agruras físicas e psicológicas sofridas por Fernando de Brito e seus colegas de cárcere".

1) Em que consiste sua vida e missão hoje, e no distrito do Sítio do Conde, no litoral baiano? Qual é a sua principal alegria hoje? .
Eu vim para o Sítio do Conde por motivos de saúde. (...) Chegando aqui, senti-me desafiado por inúmeras necessidades do povo. Fiz diversas tentativas fracassadas, uma delas no ramo da cura através de ervas. Depois comecei a ver que todos os meninos brincavam de banda axé e as meninas brincavam de cantar ou dançar. Ao mesmo tempo os jovens estudantes começaram a aparecer em minha casa para pesquisas escolares utilizando meus livros. Foi nascendo a idéia de fazermos uma Casa de Cultura, entendendo Casa, não somente como lugar mas sobretudo como oficina de cultura. A idéia é de fazermos uma educação de jovens extremamente pobres, de modo não convencional, a partir do ideal que eles criam a partir do que vêem na televisão.
Hoje na Casa de Cultura, os jovens cantam, dançam, fazem teatro e tocam percussão. Temos também Biblioteca, Discoteca e Filmoteca. Algumas das primeiras pessoas que vieram a nossa Casa já estão trabalhando no mesmo setor cultural do Município.
Concomitantemente percebi a harmonia em que viviam candomblecistas e católicos. Pensei bastante e resolvi estudar o Candomblé a fundo e visitar todas as Casas religiosas, crentes também. Os candomblecistas me receberam muito bem. Nossos irmãos crentes mostraram receio e desconfiança, de modo que só foi possível estabelecer o diálogo com os primeiros.

2) Frei Betto afirma que o livro narra momentos de "inusitada beleza". Quais foram estes principais momentos?
Muita coisa emocionante e bela aconteceu nos 4 anos de prisão, principalmente relacionadas à solidariedade. Mas uma me comove ainda hoje e é descrita no livro: estávamos no Pavilhão 2 do Presídio Tiradentes, um antigo mercado de escravos de São Paulo. Uma parede separava os homens das mulheres. Na noite de Natal, celebramos a Missa em nossa cela e cantamos várias músicas religiosas. Terminando a Liturgia ou estendendo-a ao coletivo, fomos à porta da cela e começamos a cantar para todas as outras celas. Sem percebermos ao início, nossos outros companheiros começaram a cantar também. E, surpresa, quando terminamos, as companheiras do outro lado da parede responderam com outros cantos. Esta troca de afeto foi até muito tarde. Jesus tinha nascido para todos, cristãos ou marxistas.

3) Assim como Dom Paulo Evaristo afirma: "Tortura nunca mais", pode-se afirmar "Ditadura Militar nunca mais". O que você comenta sobre esta afirmação?
Qualquer ditadura, militar, religiosa, cultural, ou qualquer outra, desumaniza as pessoas ao negar um dos elementos essências: a liberdade de pensamento e ação. Nós só crescemos em estatura humana quando agimos de modo consciente e livre. Não estou falando da liberdade burguesa de comprar tão apregoada pelos meios de comunicação. Estou falando da liberdade de ser, e para nós cristãos, de ser a caminho de Deus.

4) Você foi contemporâneo de prisão de dezenas de outros presos políticos, entre os quais alguns se despontam hoje no cenário político, inclusive em nível federal. O que você diz sobre eles/as e sobre o Governo Lula?
Dos que estão neste Governo, fui companheiro de prisão de Paulo Vanucchi. E vejo com muita satisfação que sua atuação tem sido excelente. Ele é capaz. Do Governo como um todo, creio como quase todas as pessoas, que demos um passo à frente do Governo anterior, muito embora não seja o Governo que queríamos e queremos e nem é o Governo das promessas eleitorais. Onde estão a reforma agrária, urbana, a defesa dos direitos humanos, dos direitos trabalhistas, dos índios e a promoção da igualdade racial?

5) Você tornou-se um frade prisioneiro político com 33 anos de idade. Qual a relação que você faz de sua militância política e o carisma dominicano?
Desde que comecei a ler sobre São Domingos e a Ordem, o que mais me impressionou foi o propósito de São Domingos, depois de ter estabelecido a Ordem no mundo. Ele queria ir “ad cumanos”. Entendo que ele queria missionar entre aqueles que estão no limite ou fora do âmbito da Cristandade. Aliás, a Ordem nasceu da necessidade de se dar atenção aos irmãos que viviam na heresia. No meu entender, a Ordem existe para atender as situações e pessoas limite, os que estão excluídos, porque toda exclusão é injusta. Nós dominicanos no Brasil, ao resolvermos atuar politicamente, o fizemos porque a situação política era injusta e inumana. “Ad cumanos”. Creio que este propósito maior deve perdurar.

6) O conhecido "tempos de chumbos" produziu muitas vítimas no Brasil. Você é uma delas. Quais lições você socializa com a juventude brasileira hoje e, em especial, com a juventude dominicana?
A vivência de uma comunidade cristã nos cárceres da ditadura militar brasileira foi sentida como uma revivência das comunidades cristãs sob as catacumbas romanas, período muito fértil para o aprofundamento de nosso ideal. A Igreja do Brasil não nasceu do sofrimento, do sacrifício, do martírio. Veio com os conquistadores. Nós vimos que nossa experiência se aproximava da comunidade descrita nos Atos dos Apóstolos. A Igreja para ser cristã deve passar pelas catacumbas.

7) Qual a mensagem final que você deixa aos leitores e leitoras de "Semeando Justiça e Paz".
Creio que hoje mais do que nunca se torna necessário sermos pessoas do diálogo. Somos cristãos e é como cristãos que queremos realizar o pedido de Jesus descrito no capítulo 17 do Evangelho de São João, a unidade de corações, de ideal, de realizações. Não a igualdade. Não basta dizermos o mesmo credo. Importante é construirmos o Reino baseado no Amor e na Justiça, o Reino da Paz.




Reportagem retirada do Informativo da Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil. ANO V nº 28 junho de 2009.
Admilson

Um comentário:

  1. Acabei de assistir o documentário "Ato de Fé". Não sei nem o que estou sentindo. Virou um turbilhonamento dentro de mim, de respeito, de amor, de admiração por Fernando e todos os que vi e ouvi no documentário. Só quero deixar um abraço. Não dá para falar nada. Estou abismado! Estou agradecido pela fé e coragem. Meu irmão Fernando, Oswaldo, Ivo, Beto, Tito e todos mais: sou apaixonado por vocês.
    Luiz Marques

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