quarta-feira, 1 de julho de 2009

Livro é baseado nos pequenos bilhetes que o dominicano Fernando Brito escreveu clandestinamente, entre 1969 e 1973, nos porões da ditadura militar

Escrita da sobrevivência: frei Fernando registrou em bilhetes o cotidiano da tortura dos porões da ditadura.
Há livros que merecem ser lidos; outros devem ser lidos; e alguns poucos precisam ser lidos. Nessa última categoria se enquadra Diário de Fernando, de Frei Betto, pelo que traz de contribuição para a compreensão da história recente do Brasil – país que sempre esteve longe de ser “pacífico”, como alguns apregoam.Mineiro de Belo Horizonte, um dos expoentes da teologia da libertação e ex-assessor especial do presidente Lula, Frei Betto volta à ditadura militar instalada no país em 1964, assunto que explorou em outros livros, como Batismo de sangue. Com a autoridade de quem sentiu na pele os horrores do regime autoritário, ele se debruçou, durante meses, sobre centenas de minúsculos bilhetes, que, de 1969, ao ser preso, até 1973, quando o soltaram, foram escritos clandestinamente pelo frade mineiro Fernando Brito.Desde 1996 morando no distrito de Conde, no interior da Bahia, onde continua se dedicando aos pobres, só recentemente frei Fernando, de 72 anos, resolveu tornar público o seu diário – transformado em livro pelo amigo Betto, companheiro de convento e de cela em vários presídios de São Paulo.
Em Batismo de sangue, filmado por Helvécio Ratton, Betto apresenta a versão dos dominicanos para o assassinato de Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), em novembro de 1969, em São Paulo. A polícia chegou ao guerrilheiro por meio de Fernando Brito, depois de submetê-lo a terríveis torturas. Ele fala também do martírio de frei Tito Alencar, dominicano como eles, barbaramente torturado.No novo livro, essa história é contada a partir dos bilhetes de frei Fernando. “Diário... revela o caráter visceralmente cruel do regime militar brasileiro. Mostra como os presos políticos, que por lei deveriam merecer tratamento diferenciado, eram amontoados em presídios infectos, sem direito a sair da cela, exceto duas vezes por semana, uma para receber visitas durante três horas e outra para uma hora de sol. Todo o tempo restante se vivia sob tranca rigorosa. O absurdo culminou com a transferência dos frades para o regime de presos comuns, misturados a eles”, conta o autor. Em Diário de Fernando, escrito por Frei Betto na primeira pessoa, a narrativa vai muito além, mostrando rotina da prisão. Diante das ameaças, das incertezas quanto à liberdade e das torturas, só a fé mantinha os religiosos vivos. “Arrancaram-me as roupas, dependuram-me no pau de arara, ligaram os eletrodos em minhas orelhas e nos órgãos genitais; armaram-se de porretes, rodaram a manivela, fizeram-me estrebuchar sob a virulência das descargas elétricas”, relata Fernando.Num dos bilhetes, comentam-se as torturas a que frei Tito foi submetido. Os algozes obrigavam recrutas a participar da barbárie. “Jovens imberbes, convocados ao serviço militar por completarem 18 anos, alheios a toda a conjuntura, levados à sala de sevícias e forçados a presenciar e rodar a manivela de choques”, revela o autor. DOR EM FORMA LITERÁRIA. A ideia de transformar os bilhetes em livro, explica frei Betto, foi do próprio Fernando. “Esperamos tanto tempo para torná-los públicos. Primeiro, porque a ditadura durou 21 anos, até 1985. Depois, deu trabalho ‘traduzir’ todas aquelas anotações em letra microscópica. Enfim, nos últimos três anos cuidei de dar redação ao diário dele, o que exigiu pesquisas sobre anotações muito breves, às vezes um nome sem sobrenome, um episódio sem data precisa”, conta o dominicano.Enquanto dava forma literária àqueles breves relatos, muitas coisas – ainda não esclarecidas – voltaram à cabeça. “Doído para mim, hoje, é não saber o paradeiro de companheiros mortos e desaparecidos, ver as Forças Armadas insistirem em não abrir os arquivos. Por outro lado, experimento imensa satisfação em trazer à tona a memória dos anos de chumbo. Estamos há 60 anos do nazismo, mas a cada dia surgem novos fatos, novas denúncias. Assim será com a ditadura militar brasileira. Como disse Walter Benjamin, a memória das vítimas não se apaga”, diz frei Betto. Arrependimento? Sem vacilar, o autor mineiro – que está escrevendo um novo romance, com planos de publicá-lo em 2011 – afirma que não. Ao contrário, sente-se feliz por ter participado da luta contra a ditadura e pela redemocratização do Brasil. Frei Betto acredita que a grande lição que o brasileiro pode tirar daquela época é jamais se dobrar a qualquer tipo de opressão. “Hoje, vejo o país formalmente redemocratizado e com avanços significativos, sobretudo no governo Lula. Porém, deve haver também democracia econômica, redução da desigualdade social, acesso de todos a uma vida digna, justa e feliz. Disso ainda estamos distantes”, lamenta.
ENTREVISTA/FREI FERNANDO
*O que o senhor achou do resultado final do livro?
Fr. Fernando: Gostei muito, porque o Betto, com sua sensibilidade, além da facilidade para escrever, conseguiu colocar ali a minha experiência. O texto do diário é seco, mas ele conseguiu transmitir exatamente a minha vivência, os meus pensamentos naquela época.
*Por que só agora, 40 anos depois, o senhor resolveu trazer à tona esses escritos?
Fr. Fernando: No primeiro momento, tentei escrever o livro. Mas era muito doloroso, muito difícil. Não consegui chegar a nenhum resultado. Foi quando busquei o Betto, e ele topou imediatamente.
*Como o senhor conseguia escrever nos presídios da ditadura militar, sem ninguém saber?
Fr. Fernando: Fingia que estava lendo, com as páginas de algum livro abertas. Então, com uma caneta Bic, ia escrevendo em papel de seda, com letras bem minúsculas. Depois, durante as visitas, passava minhas anotações a pessoas de confiança, que as guardavam. Logicamente, muita coisa se perdeu.
*O senhor chegou a fazer alguma combinação com Frei Betto, alguma exigência?
Fr. Fernando: Exigência nenhuma, Betto é irmão. Foi ele quem falou: “Só não posso ser pressionado”. É claro que fiquei ansioso quando resolvemos transformar os bilhetes em livro. Mas sabia que isso demandaria tempo.
*Quais são as lições que o senhor tira daqueles anos de chumbo?
Fr. Fernando: Aprendi muita coisa. Uma é permanente, como disse São Paulo, quando estava preso em Roma: “Estou preso, mas a palavra de Deus não está presa”. Era isso que me dava forças. Sentia uma liberdade incrível, por mais estranho que possa parecer.
*O senhor foi muito torturado?
Fr. Fernando: Todos nós fomos torturados. Tomei choques elétricos, tudo.
*Como é passar por essa violência?
Fr. Fernando: A gente fica em uma situação desumana, fora do humano, porque os gritos brotam, por mais que a gente queira reter. A dor é tanta que eles aparecem de qualquer modo, por mais que a gente não queira. Mas não apenas nós fomos desumanizados, os torturadores foram mais, porque são eles que provocam aquele sofrimento todo para obterem as informações, como funcionários públicos.
* O senhor teve algum contato direto com o delegado Sérgio Paranhos Fleury?
Fr. Fernando: Foi ele quem me torturou, pessoalmente. Ele e o pessoal dele, do Esquadrão da Morte.
*Qual é a visão que o senhor tem do Brasil de hoje? O país está no caminho certo?
Fr. Fernando: Houve muita coisa boa no campo da saúde, da comunicação e até do ponto de vista econômico. Mas onde está o povo em meio a tudo isso? Quais são os projetos sociais do governo? O Bolsa-Família? Ele é um bônus, não a outorga de um direito. Do ponto vista social, o povo continua mal. Projetos como a reforma agrária, a reforma urbana, pelos quais lutávamos na década de 1960, continuam emperrados. O direito dos índios, onde está? Não está bom. Não estou gostando.
Admilson

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