quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Páginas da revolução dos frades


Diário de Fernando, de Frei Betto, detalha o papel dos dominicanos no combate à ditadura militar

O envolvimento dos frades dominicanos com a Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella, foi mais longe do que se acreditava ou, pelo menos, do que admitiam os implicados no esquema. "Pau para toda obra, só não apertamos o gatilho", revela frei Fernando de Brito, 40 anos após a morte do líder revolucionário, que foi assassinado numa emboscada armada pela polícia, em 4 de novembro de 1969.

"O trabalho dos frades na ALN consistia em favorecer o desabrochar da luta armada. Base de apoio de militantes envolvidos em expropriações bancárias, sequestros, bombas, etc., acolhíamos feridos e perseguidos, facilitando-lhes a recuperação e a fuga do País; escondíamos armas e material considerado subversivo, fazíamos o levantamento de áreas potencialmente adequadas ao desencadeamento da guerrilha rural", afirma o religioso no livro Diário de Fernando - Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira.

Escrito por Frei Be tto, outro participante do esquema e seu principal historiador, o livro baseia-se nas anotações feitas por Frei Fernando em quatro anos de prisão. Escritas com letras minúsculas e acondicionadas em canetas Bic, as anotações foram contrabandeadas com a ajuda de amigos que visitavam os presos. Muitas vezes, o frade destruiu e perdeu o material escondido nas canetas para ele não cair nas mãos dos carcereiros.

"Frei Fernando, que ousou fazer o diário na prisão, tinha o propósito de ele mesmo redigi-lo para o livro. Não o conseguiu e, há cinco anos, me repassou todo o material, sobre o qual trabalhei entre 2006 e 2009. Foi ele quem preparou o rascunho ao transformar em texto as telegráficas anotações contidas em papel de seda e escritas com letras microscópicas", diz Frei Betto, ao explicar a coautoria. Como o diário só registrava os fatos, Frei Betto checou nomes e descreveu episódios aos quais eles se referiam.

Em Diário de Fernando, h á detalhes sobre o apoio dado à luta armada pelos dominicanos ligados a Marighella que falta em Batismo de Sangue, lançado por Frei Betto em 1982. Mas um livro completa o outro, segundo o autor. "No Batismo, conto, por exemplo, como funcionava o esquema de fronteira para dar fuga aos perseguidos pela ditadura. Isso não consta no Diário. Mas este revela, com mais clareza, como o convento das Perdizes funcionava como ponto de apoio aos que lutavam contra o regime militar", afirma Frei Betto. De todo modo, Diário de Fernando reitera o que diz Batismo de Sangue sobre a postura da Igreja em relação à prisão dos frades.

As anotações de Frei Fernando remetem a outros livros de Frei Betto - Cartas da Prisão (1974) e Das Catacumbas (1976) - que relatam o sofrimento dos frades no cárcere. Uma terceira publicação, O Canto na Fogueira (1977), reúne cartas de Frei Betto, Frei Fernando e Frei Ivo Lesbaupin, na época frade dominicano, que também esteve preso p or envolvimento no esquema de Marighella. Os três religiosos foram condenados a quatro anos de detenção. "Fomos presos em 1969, julgados em 1971 e condenados a quatro anos de reclusão. Nosso recurso foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1973, um mês antes de completarmos os quatro anos. Nossa condenação foi reduzida de quatro para dois anos, de modo que temos um crédito de dois anos com a liberdade", comenta Frei Betto, lamentando o tempo sofrido.

Quando veio a Anistia, em 1979, os dominicanos já haviam cumprido a pena que a medida anulou. Ao serem anistiados, recuperaram os direitos políticos que haviam sido cassados. "Cassaram os direitos de Frei Betto, mas não os do eleitor Carlos Alberto Libânio Christo", lembra o frade. Impedido de votar como religioso e militante de esquerda, era obrigado, sob pena de multa, a votar como civil. A solução encontrada foi uma saída mineira: no dia da eleição, Frei Betto não votava, mas Carlos Alberto ju stificava o voto fora do domicílio eleitoral.


José Maria Mayrink - Jornalista

Esta matéria foi públicada no Jornal Estado de São Paulo em 06/09/2009

2 comentários:

  1. Boa tarde! Terminei "Diário de Fernando" agora, depois de uma semana de leitura...preciso muito dizer, já li inúmeros livros sobre o período militar, sou fascinada pela história, muitos dos livros emocionantes, mas somente dois deles me fizeram chorar, o primeiro Brail Nunca Mais, e o segundo o seu livro. Não sei explicar, somente com esses dois livros eu precisei de estômago para prosseguir na leitura, justo eu que devoro um livro a cada dois, três dias. Senti uma emoção tão grande, um orgulho tão profundo diante de exemplos tão fortes como o seu. Definitivamente, é um livro de coração, daqueles que deveriam ser leitura obrigatória para qquer pessoa. Muitos parabéns! E que ainda venham muitos e muitos livros!

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  2. Rafael Andrade
    Acabei de ler o Diário de Fernando a pouco tempo e concordo plenamente com o comentário da amiga acima. Tive a feliz oportunidade de conhecer o fr. Fernando pessoalmente e, quando estava lendo o livro, me lembrava dele me contando essas experiências pessoalmente. O fr. Fernando é um exemplo de superação e fidelidade, junto com os outros dominicanos que foram presos e brutalmente seviciados por aquele regime assassino que assombrou o país.
    Diário de fernando é um livro que denuncia, mas que também nos dá uma imensa lição de luta, fidelidade e fraternidade. Sinto cada vez mais orgulho de estar entrando para a Ordem e fazer parte dessa família.
    Recomendo a leitura a todos e,sem medo de exageros, digo que é o um dos melhores livros que já li.
    Parabéns a você, fr. Fernando pela coragem de fazer as anotações a ao fr. Betto, que deu um trato literário explêndido ao que já o era.
    abraço

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