quinta-feira, 13 de maio de 2010

CARTA DO SÍTIO Nº 2

Sítio do Conde, 26 de setembro de 1996

Amigas e amigos,

Agora, dia 27, dia dos Santos Cosme e Damião, haverá caruru por todos os lugares da Bahia para as crianças. É a oferta aos Santos. Bonito, não? Ofertar porque se gosta, para dar alegria, não para pagar alguma coisa recebida. Fica longe o “é dando que se recebe”. Mas é o dia também de começarmos a Festa do meu Padrinho São Francisco. Aliás, moro na sua casa. Não deve ser no seu quarto. O meu tem muitos livros, artesanato, bugigangas variadas. Se é que ele tinha quarto, seria certamente pobre, despojado, austero, nu como nasceu e se vestiu ao fazer sua opção pela “irmã pobreza”.
Betto, Ivo e eu saímos da prisão política no dia 4 de outubro de 1973. Fiz de São Francisco meu padrinho, padrinho da minha liberdade. Não é ele o Livre? De tudo?
Cada vez dou maior importância à “achologia”. Acho que, antes que eu o escolhesse, ele já era meu padrinho e acho que os “achos” contêm mais certezas do que as ditas certezas “científicas”. Precisamos recuperar a importância das intuições. Elas são verdadeiras inspirações do Espírito de Jesus. Acho que expressamos estas inspirações nos nossos importantíssimos “achos”. A Festa, bem, a Festa, vamos começar amanhã, sexta-feira, às 4 horas da manhã com uma Procissão Penitencial que vai andar por todo o povoado. Nos outros dias vai ter de tudo: outras Procissões, diversas Missas, lavagem da escadaria da Igreja, cada dia a novena é preparada por um grupo leigo. Fico “assuntando” e de vez em quando faço alguma coisa que só o Padre faz... em público.
A Casa de São Francisco não está pintada, as portas e janelas em precário estado, mas, junto com dois meninos do bairro, “pipoqueiros”, estamos fazendo o jardim na frente e atrás da casa. Muitas rosas (transmitem muita energia). Aliás, vocês que respiram poluição, caneta e papel na mão. Eis a receita da minha amiga Ione, de Belo Horizonte: peguem uma rosa vermelha, daquelas pequenas, deixem-na secar na sombra (não a ponham em saco plástico). Quando começar a soltar um pouquinho de óleo, fervam-na em um litro de água. A água deve estar pelando, depois de ferver. Inteligente, não? Por isto mesmo, ou seja, por estar pelando, e por serem inteligentes, deixem a água esfriar e ponham-na na geladeira. Peguem destes vidros com conta-gotas. Não há medida. Quando sentirem as narinas congestionadas ou irritadas, pe-guem o conta-gotas cheio do líquido e ponham em cada narina. Não é preciso pagar, nem a mim, nem à Ione. Quando a água na geladeira apresentar mofo, jogar fora e fazer mais. Ou acabar com a poluição logo, logo. Depois, façam uma oferta gostosa ou bonita ao seu Santo de predileção, sem pedir nada, sem agradecer, mas porque gostam do Santo.
Mas a casa de São Francisco é gostosa. Além da presença dele, afinal é o dono, a casa é grande, espaçosa, muita luz, o ar e a maresia, vindos do mar aqui pertinho. O ar corre sempre. Uso a sala de jantar, a cozinha, e meu quarto, além da varanda de trás e da Capela, em cima do meu quarto. Além das rosas, que é difícil pegar aqui, que é areia pura, plantei Oxalá (boldo) e Amalá, contra formigas, pinhão roxo contra mau olhado, doril (verdade!) contra... o óbvio, ora. Do sertão, palma, cabeça de frade, rosa de Oxalá, rosa negra, e estou esperando o mandacaru. Daqui, o mato que dá flores lindas e que nasce na areia pura e bolente de dia. No meio do quintal, o coqueiro, do qual fiz o símbolo de Jesus nas praias. É o alimento do pobre. Agora os ricos não se importam do pobre comê-lo (o côco, gente) porque o preço no Brasil e exterior, caiu muito. Para enfeitar mais, fiz caminhos tortuosos com cocô de vaca. É verdade que o povo daqui na sua infinita sabedoria fala é merda mesmo. Muito mais poético, não concordam? Ai!, ia me esquecendo. Tenho caqueiros(vasos de barro) com folhagens lindas. Uma delas é o famoso Sagrado Coração de Jesus, que, além de ser maravilhoso, também é remédio.
Aqui também no interior, há muita coisa parecida com as Alterosas. Logo ao chegar ao povoado, vi um beco logo na entrada da cidade. Me informaram, bem baixinho que se chamava “Faiado”. Perguntei o porque de “Faiado”. Pausa, silêncio, cabeça baixa, faces mais vermelhas que o queimado de sol. E o suspense aumentando. Quando perguntei aos homens, também se repetiu a mesma coisa. Bem, eu tinha de estrear como Sherlock Holmes, sem boné, capa, guarda-chuva e tílburi. Pus o chinelo de dedos, a camiseta e o short. Tomei fôlego e entrei no fadado e calado “Faiado”. É um beco de moradores pobres, crianças, cachorros, e esgotos a céu aberto, pelos quais pagamos. O já famoso e preocupante, fantasmagórico Faiado acaba atrás da rua da Pipoca. Ah, mas o novelo começa a se desembaraçar. Logo no início do, neste momento, terrificante Faiado, tem outro beco. Outro? Sim senhores, outro, estreito (ainda bem que era dia). Sai do Faiado e acaba, ou começa, não sei, na frente da rua da Pipoca. Seria pista falsa? Às pessoas que passavam eu ia perguntando. Era só escândalo. Logo um padre perguntar isto! Pensei que trariam cadafalso, guilhotina, cadeira elétrica, forca, pelotão de fuzilamento ou mesmo a peixeira, muito mais eficiente. - Não pode falar, me diziam. A muito custo, tenacidade, fibra, técnica, enfim, tudo o que um jogador de seleção deve ter, encontrei um menino, com sua candura, ingenuidade, e muita malícia que abriu a boca sem dentes e me disse “É Petê Faiado, ó xente.” Menos mal. Passo gigantesco para a elucidação do mistério digno de um Hercule Poirot. Mas ainda fiquei quase na mesma. Só deu para pensar que era o beco do meretrício. Afinal, sou mineiro e na minha terra tinha “O Beco da Sinhaninha” e um outro, igualmente competente, a “Esquina da Anita Caoia”. Mas este mês agora, passava (por acaso, hein!) pela Creche (dos bêbados), um bar muito afamado. Só tem pinga. Abre às 7 horas para o café e fecha quando sai o último cliente. Pois bem, na Creche ouvi alguém dizendo que o Beco em questão, registrado na Prefeitura do Conde, chama-se Rua do Pentelho Faiado e não é zona de meretrício. Como sempre disse, eu mesmo, cada qual com a sua idiotice., às mais das vezes, saborosa. Agora quero descobrir a história de que, como e porque o nome(personagens reais e tudo), antes que os políticos, sempre tão decentes achem o nome imoral e coloquem na famosa rua o nome de um FHC ou ACM que, se não são imorais!?, são mortais, graças a Deus.
Bem, deixando as coisas sérias de lado e espairecendo um pouco, preciso dizer que o Curso Bíblico não deu certo. Acho que fiz o que devia ter feito - desta vez. Ao terminarmos as festas de maio e junho, fiquei quieto para ver se a Comunidade pediria o Curso oferecido em fins de maio. Ninguém disse bulhufas, e nem eu. Mas a partir da realidade local, sem médico, sem hospital, o ambulatório só tem Mercúrio Cromo e aparelho de tirar pressão. Nem esparadrapo. Ah!, tem uma atendente de enfermagem e uma faxineira - são honestas, viu? - fazem o que podem. Às vezes, pobres, dão do que não têm para comprar alguma coisinha. Agora mesmo tivemos um surto de Dengue. O maior artigo consumido foi Tylenol. A Dengue é fogo, senhoras, senhores e senhoritas. Mesmo vindo numa epidemia branda. Não foi hemorrágica. Olha que o hospital do Conde, sede do município, fica a seis quilômetros de distância e é igualmente precário. Pensamos fazer um movimento de Saúde Popular. É tempo de eleições. Estamos fazendo algumas coisas que não criem disputas políticas internas. Fizemos uma pesquisa em todo o povoado com o objetivo de descobrir as doenças mais comuns, estruturamos, mais ou menos, o movimento e escolhemos seu nome: Movimento de Saúde São Francisco de Assis. Temos uma Coordenação composta por uma líder estudantil, por uma senhora que já trabalhava na Pastoral da Criança, e eu que não entendendo nada, sou o Bolo da Festa. O questionário, amador, era passável e fomos a todas as casas do povoado. Dos moradores, claro, não dos turistas. O pessoal do Candomblé e Umbanda colaborou. O Obreiro da Igreja Universal disse que tinha de pedir licença ao Pastor, mas os fiéis já tinham colaborado. A Igreja Adventista respondeu cupolisticamente que cada Igreja faz seu trabalho, ou seja, “cada macaco no seu galho”, mas a grande maioria dos fiéis colaborou. Agora, vamos começar pelo mais simples. A parteira, com duas senhoras que já tiveram bastante filhos, vão visitar as gestantes todo mês para dar conselhos diversos, preparar para o parto ou com a parteira ou no hospital do Conde, e depois participar da Pastoral da Criança, a mãe e a criança. Agora, o mais difícil: pensar como atingir os problemas sanitários públicos, sem recursos financeiros e humanos. Aqui faço um apelo. Aqueles que já trabalham com Movimentos de Saúde Popular, mandem-me livros, receitas, dêem endereços, digam como trabalham, como conseguem recursos, quais métodos de trabalho usados, etc. Como erradicar o piolho, a Dengue? como acabar com a verminose, as doenças causadas pelas condições de trabalho na lagoa ou no mar sem a proteção adequada? Isto num governo FHC e no Estado em que ACM manda. Uma pista são as plantas medicinais. Mas é necessário mais.
O que nos anima e nos torna cada vez mais teimosos são a esperança, a persistência, o Deus-em-nós. São o fundamento de tudo.
Que o Padrinho interceda por nós junto a Jesus neste caminho. E leve meu abraço a cada um de vocês.

Até outra vez

Frei Fernando de Brito, OP

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