segunda-feira, 31 de maio de 2010

Carta do Sítio nº 4

SÍTIO DO CONDE, 04/03/97, DENTRO DA TERCEIRA SEMANA DA QUARESMA

Amigos e amigas,

Até agora já escrevi 5 cartas circulares: a de nº 1, escrita a 20/06/95, dizia da minha mudança para Valença. A de nº 2, escrita de Belo Horizonte a 24/10/95 falava da mudança forçada de planos: por motivos estranhos à minha vontade e compreensão, eu não iria mais para Valença. A carta circular nº 3, de abril de 1996, anunciava minha vinda para Sítio do Conde. A de nº 4, de setembro, falava de diversas coisas, sobretudo das plantas na areia da Casa de São Francisco. A de nº 5, do Sítio do Conde era uma carta natalina pouco ortodoxa mas, creio eu, bastante teológica. As reações foram as mais diversas, desde elogios escrachados, passando por publicações, até broncas de absoluta indignação e abominação. Mas quando a gente faz alguma coisa que mexe com o povo provoca reações assim, não? Eu teria ficado triste se não tivesse havido nenhuma.
Ao começar a esboçar esta Carta pensei que o nome Carta Circular é muito frio e impessoal. Já que estou em Sítio do Conde, ou as cartas se chamariam Cartas do Sítio ou Cartas do Conde. Ora, seria muita pretensão minha, acompanhada de forte frescura aristocrática escrever Cartas do Conde (quem? eu?), ou se poderia pensar que eu sou um tarado em Conde (a pessoa ou a fruta do Conde?). Olha o quiproquó, a ambigüidade do título. Certamente pensariam de mim coisas estranhas e, como quem conta um conto, aumenta um ponto, resolvi, talvez inspirado pela sabedoria do Salomão (o turco que vende roupas especiais para todo mundo na Feira aos sábados na cidade chamada Conde), portanto, chamar estas cartas mais simplesmente Cartas do Sítio. Pode-se pensar no Sítio do Pica-pau Amarelo, na terrinha pequena com que tantos sem-terra sonham e lutam, no sitiante que labuta de chuva a sol na sua terra-coração, naquele que está sitiado por opressões de toda espécie. Além disto, não deixa de ser mais poético e menos pernóstico, certo? Acho melhor deixar de fora as cartas circulares números 1 e 2 porque “mijam fora do caco”. Para os puritanos, devo dizer que, ao entrar para a tradicional e vetusta Ordem dos Dominicanos, meu Padre Sub-mestre usava esta expressão com muita propriedade, em alto em bom som, a torto e a direito. Até hoje sigo as lições aprendidas no Noviciado (as que gosto, claro). Sendo assim, as Cartas Circulares de números 3, 4 e 5, serão dagora em diante denominadas Cartas do Sítio nºs 1, 2 e 3. Deste modo, esta que está começando a ser escrita (espero terminá-la), corresponde à Carta do Sítio nº 4. A explicação foi um pouco longa mas me lembro do célebre escritor, cujo nome, por conveniência, me esqueci, que dizia: quando falta assunto, fale mais.
Trabalhar com leigos é outra coisa. A falta de Direito Canônico e a posse da Teologia do Bom Senso talvez permitam às pessoas serem mais aptas a serem cristãs, ou simplesmente gente. Não seria por isto que Jesus escolheu, pescadores, “laranjas”, e outras pessoas desclassificadas para discípulos? Não conheço nenhum fariseu ou doutor da Lei que tenha, como tal, permanecido seu discípulo. Que Sabedoria, heim Mestre?
09/03/97, início da 4ª Semana da Quaresma. Imagino que estejam perguntando: O que este cara está fazendo de bom neste fim de mundo? Bem, fazer a gente sempre faz alguma coisa: conversa, amizade, ama as pessoas, ajuda na medida do possível. Reza, vai ao mar, anda na areia da praia, nada, pega vento, sol e sal. Se suja e suja a casa de areia. Balela xinga, a gente sorri ou não. Agora estou comendo em casa. Balela traz um pouco de arroz e feijão e eu completo com enlatados (fazem muito bem à saúde) e não enlatados (dão um trabalho!). Leio, vejo televisão, vida boa, alegre, saudável. O silêncio, a música, a solidão. E a muriçoca. Que bom! E eu não sabia. O silêncio, sinto como a voz de Deus, a solidão sua presença e a música seu odor. A muriçoca, bem deixo aos teólogos da Libertação a séria questão das muriçocas. É isto o principal. Para tal seria bastante estar aqui e agradecer ao Bom.
Aquele plano de saúde, do jeito que pensei, não foi à frente. Mas não desisti. Foi feito algo no jardim. Nele, o principal no campo da saúde, são as rosas. São as flores que transmitem mais energia. Não é só poesia ou esoterismo mas Ciência. Plantem rosas. Em qualquer lugar. Também nos apertamentos, em caqueiros (vasos de barro). Qualquer cor, tamanho, perfume. Mas plantem rosas. Depois, já tenho o Mastruz (Erva de Santa Maria), o Doril (ou Novalgina), a Erva Cidreira, o Oxalá (Boldo), o Pinhão Roxo (contra mau-olhado), o Girassol que é também comida de papagaio (o animal que quer deixar de ser irracional, como muita gente que conheço) e a Rosa de Oxalá. A Rosa de Oxalá ou Capucho de Seda tem uma seiva que é remédio (precisa pesquisar cientificamente). E mais tarde fazer os florais baianos.
A cabeça, nas horas vagas, que não são muitas, anda a mil, pensando em como começar com as ervas propriamente ditas medicinais no terreno contíguo a casa. Estou pensando em simplesmente cercar e plantar. Começar a servir à população. Também, ir às casas e colher receitas e outras ervas. Por exemplo, a rua da Pipoca, à tarde, fica cheia de meninos raspando a cabeça. Não é Candomblé, não. É para, depois de bem raspadinho, pegar o cabelo no chão, botar fogo, pegar as cabeças dos meninos ou meninas, passar cachaça, amarrar um pano por 3 dias. NÃO TOCAR FOGO. Sim, porque o remédio é para matar piolhos, não é herodiano, não. Não resolve. Precisa atacar os centros de triagem e distribuição dos piolhos, principalmente escolas e casas onde moram 20 ou 30 pessoas.
Remédio contra bicho de pé (preventivo e social)? Basta prender os porcos.
Trabalho tem; disposição, às vezes. O tempo é que é difícil. Mas ainda faltam os recursos humanos. Posologia dos remédios, indicações e contra-indicações. Diagnósticos.
Como disse na Carta do Sítio nº 3, no que mais caminhei foi o Diálogo com as outras Religiões. Fácil com os Cultos Afro-brasileiros (Umbanda e Candomblé). Difícil com as Igrejas Evangélicas. Agora apareceu a Assembléia de Deus. O sectarismo, nosso e deles é muito grande. Não nos enganemos. Ainda existe pra nós o “fora da Igreja não há salvação”. Mais sutil, mas há. Mas é sempre possível uma amizade, visita, conversa, etc.
Minha Quaresma tem sido vivida em continuidade com o Natal. Lembram-se? Balela apanhava, as crianças apanhavam, até que, “de repente, não mais que de repente”, o Espírito resolveu continuar soprando e Balela permitiu-se sentir seu sopro. Não agüentou mais, se negou ao marido, agüentou ameaças de morte, a filhinha de 4 meses apanhou. Foram tempos de muita tensão. Quantas vezes não tive de me fingir de corajoso para buscar Balela e as crianças para dormirem em minha casa. Sempre vinham também seus filhos maiores e os irmãos. Mesmo assim o marido dizia pela cidade que sua mulher e o padre estavam transando. Até que Balela e os filhos saíram de casa e foram morar com a mãe. Acho que no barraco da mãe estão umas 30 pessoas. O dono da casa de Balela, Sr. Valério, entrou no caso. Baixinho, semi-analfabeto, casou-se com a filha do dono de tudo antigamente. Ainda é rico. Ir à Justiça morosa e baiana acemista significaria levar de 5 a 10 anos para resolver a questão. Polícia? Fazer o quê? Bater e soltar? Seria pior. O dono da Casa, como todo mundo que tem dinheiro, fala gritando e é acostumado a ser obedecido, parece autoridade. Não é, mas todos o consideram. Bordão, com a presença do padre como testemunha, na frente do Sr. Otávio, deixou Balela tirar todas as suas coisas da casa. E no dia seguinte a derrubaria. Já estava caindo mesmo, não tinha chaves e seria sempre ocasião dele importuná-la. Ele não cumpriu o prometido. Fizemos um mutirão e derrubamos a casa. Agora, com ajuda daqui e dali, Balela está comprando o material para construir uma nova, com escritura e tudo.
Nisto tudo senti Balela e filhos como a figura de Jesus na tortura, na calúnia, na cruz. Eu me senti uma Verônica, mesmo sem saber cantar. Pelo menos sendo solidário apresentando-lhe o Sudário para enxugar sua dor (este sudário, mais que verdadeiro). Não é que tenha passado o perigo. Bordâo tinha saído para pescar durante 15 dias. Já voltou. Como todo covarde, só enfrenta abertamente mulheres baixinhas e crianças pequenas. Mas é traiçoeiro. As trevas ainda pairam sobre o ar, querendo torná-lo pestilento. Mas a luz no túnel já se torna mais nítida. Parece que a pedra do Túmulo já está sendo rolada. A Ressurreição, a Vida saindo da Morte é um Parto difícil e todo parto é doloroso. Mas se a Vida vem, empurrada pelo Senhor da Vida, alegremo-nos. E na alegria, é preciso sorrir. A maldade tem sempre sua burrice. E esta burrice, muitas vezes é jocosa. Andando pelo povoado, pelos butecos, os jogos de dominó e truco em esteiras pelas ruas, Bordão dizia que sua mulher era amante do padre. Ora, no Nordeste, duas coisas pedem morte: “mandar para a baixa da égua”, e chamar de “corno manso”. Ri-me a valer. Mesmo não sendo verdade, Bordão se chamava de “corno manso”. E não se matou, não matou ninguém, nem pediu que o matassem. Talvez porque já seja um morto-vivo. Pode ser estranho mas existem, sim, os mortos vivos.
Bem, gente, isto é um pouco do que tenho vivido aqui na Capital do Mundo (Mundo? - Do Cosmos). Daqui mesmo eu pego um Raio de Luz do Ressuscitado e vou abraçá-los. Boa Páscoa da Ressurreição!
Até quando Ele quiser e onde quiser

Frei Fernando de Brito - OP

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